Uma hashtag pode ser marca registrada? Em Nova York o debate começou
O “New York Times” dessa segunda-feira, 11 de maio, entre as muitas informações que podem deixar você apreensivo em relação ao destino de nossa civilização, tem uma que me chamou especial atenção: a briga judicial pelo direito de usar uma hashtag. É um texto de menos de meia página, assinado por David Gonzales, e sem chamada de capa; ainda assim é, para mim, a notícia mais importante do dia.
Trata-se de uma briga entre grafiteiros e uma empresa que engarrafa água. Deixemos de lado o fato de água ser um recurso natural e direito de todos porque essa é uma discussão que envolve outras coisa fundamentais, e falemos desse caso específico.
A história começa contando que a empresa, que se chama Wat-aah, convidou artistas de rua para participarem de uma campanha de conscientização para crianças a respeito dos benefícios da água em relação a refrigerantes. Diz o texto do “New York Times”: “Alguns dos artistas desenharam rótulos para a marca, enquanto outros pintaram murais ou doaram trabalhos de arte para um leilão em benefício do ‘Partnership for a Healthier America’ (Sociedade por uma América mais saudável em tradução livre)”. Muitos participaram das exibições, e uma delas, no New Museum em Nova York, foi prestigiada até por Michelle Obama.
Que uma empresa use o trabalho de artistas e não pague por ele porque o fim é nobre nem chega a surpreender; não é muito bacana ou sequer elegante, mas é feito com enorme regularidade. Só que o apelo convidativo da campanha de conscientização morreu quando um advogado da empresa que engarrafa água mandou uma carta para o “Little Italy Street Art Project”, um coletivo de grafiteiros que trabalha com vários murais de Nova York, exigindo que eles parassem de usar a hashtag #takingbackthestreets para promover seus murais na conta de Instagram.
Na carta, a empresa alega que possui os direitos de uso sobre a hashtag para sua campanha que promove a adoção de hábitos alimentares mais saudáveis, e que o uso duplo poderia causar confusão.
Richard Lehv, advogado especializado em marcas registradas, disse ao jornal que nunca ouviu falar de uma hashtag como marca registrada. “Sim, você pode proteger uma frase como ‘taking back the streets’ (em tradução livre, ‘retomando as ruas’), mas isso não dá a você monopólio para qualquer e todos os propósitos. Entendo que colocar uma hashtag em alguma coisa é uma forma de deixar com que Instagram ou Twitter possam indexá-la. Isso acelera buscas. Não quer dizer que alguém seja proprietário dela”.
Wayne Rada, que comanda o coletivo, disse que se tivesse recebido um pedido educado teria aberto mão da hashtag, mas que chegou à conclusão de que não se trata de uma simples disputa por uma hashtag. “A Wat-aah é uma empresa com fins lucrativos que saiu por aí dizendo a artistas que o trabalho deles ajudaria um programa de caridade”, diz Rada.
O coletivo não tem dinheiro para tomar atitudes legais, mas Rada deixa claro que não abrirá mão da hashtag. Como ele não teria recursos para entrar numa disputa judicial porque o coletivo sobrevive de doações, é torcer para que a Wat-aah desista de seguir adiante e convença-se de que uma hashtag não pode ser apropriada.
Para piorar, quem lê o texto inteiro entende que sobre o programa “social” da empresa que engarrafa água não se sabe mais muita coisa e que os artistas sequer foram informados dos detalhes do leilão beneficente.
De qualquer forma o perigo está no ar: quando uma empresa com fins lucrativos acha que pode se apropriar de uma hashtag – e talvez, um dia, algum juiz decida que elas realmente possam – a gente percebe que a civilização fez uma curva estranha rumo a um lugar sombrio.
Se até uma hashtag pode virar propriedade privada é porque já passou da hora de debatermos os limites morais do mercado.
Nas palavras de Michael J. Sandell, professor de filosofia política em Harvard, “os mercados se desconectaram da moral e precisamos de alguma forma reconectá-los”.