Demissão de Matt Lauer choca e aponta erros no jornalismo de TV

Desde 2012, quando assumiu o cargo de co-apresentadora do noticiário matutino “Today”, o programa de maior faturamento publicitário da rede NBC (receita de US$ 508 milhões no ano passado) e um dos mais lucrativos da TV norte-americana, que a jornalista Savannah Guthrie cultiva rotina nada ortodoxa para uma nova-iorquina. Coloca a filha de 3 anos de idade e o filho de 9 meses na cama às 19h (21h horário de Brasília) e embarca para a dela, uma hora depois. O relógio a desperta às 3h da manhã seguinte. Às 5h30, ainda noite na cidade, ela geralmente chega à sede da emissora, no famoso Rockefeller Plaza, centro de Manhattan, onde 90 minutos mais tarde ela vai apresentar notícias sobre Donald Trump, Kim Jong-un, tempestades devastadoras, além de entrevistar Jennifer Lopez, cozinhar com chef badalados e dar dicas de como eliminar as manchas mais teimosas de roupas claras.

Por volta das 4h de quarta (29), a programação de Savannah mudou por completo. Ela recebeu uma ligação inesperada e chocante. Do outro lado da linha, o chefe dela, Andrew Lack, presidente da divisão de jornalismo da NBC. Lack queria avisá-la de que seu parceiro de bancada, o jornalista Matt Lauer, nome à frente do programa por mais de 20 anos, havia sido demitido enquanto ela dormia.

Dias melhores: Savannah Guthrie (tirando selfie com Elmo) e Matt Lauer no set do programa “Today” em agosto de 2017. (Foto: Nathan Congleton/NBC)

Lauer é a última figura pública, e uma das mais poderosas até agora, a ser derrubado pela avalanche de denúncias de casos de assédio sexual sofridos por mulheres e homens, que começaram a ser relatadas quase que diariamente, desde 5 de outubro. Nesta data, o jornal The New York Times publicou reportagem bombástica, expondo três décadas de assédio contra atrizes, aspirantes ao estrelato e assistentes perpetrados pelo famoso produtor de cinema Harvey Weinstein. Oito dias antes de Lauer, Charlie Rose, que ocupava posto idêntico na concorrente CBS e um dos jornalistas mais respeitados nos EUA, com quase seis décadas de profissão, também perdera seu posto após ser acusado por mais de cinco colegas de trabalho por conduta sexual imprópria.

A decisão da rede NBC de rescindir o contrato de trabalho de Lauer, que tem salário anual de US$ 25 milhões, o mais alto da TV americana para um jornalista, foi extraordinariamente rápida. Na noite de terça (28), uma funcionária do departamento de jornalismo da emissora e de nome não revelado, chegou à sede da NBC em companhia de seu advogado. Eles queriam fazer uma queixa formal ao RH da companhia contra Lauer. Em 2014, quando a vítima ainda era estagiária da empresa e se encontrava na Rússia, participando da cobertura da Olimpíada de Inverno de Sochi, Lauer teria iniciado sua campanha de assédio. Segundo o jornal The New York Post desta quinta (30), a estagiária guardou várias mensagens recebidas via sms que corroboravam a denúncia. Entre as evidências, uma foto “muito prejudicial” enviada por Lauer a ela.

Ao vivo para a costa leste americana, às 7h de quarta-feira, uma Savannah desafiando a voz embargada, fez uma declaração pessoal, sentida e ponderada. “No momento, tudo o que posso dizer é que estou de coração partido”, disse ela ao lado de Hoda Kotb, âncora-reserva chamada às pressas para substituir Lauer na bancada do “Today”. “Estou de coração partido por Matt. Ele é meu querido, caro amigo, meu colega de trabalho e ele é muito admirado por muita gente aqui. Estou de coração partido pela corajosa colega que decidiu revelar a história dela e por outras mulheres que têm as suas para contar. Estamos lidando com um dilema nas últimas semanas: como harmonizar o amor sentir por uma pessoa com a revelação de que ela comportou-se muito prejudicialmente?”

Na manhã de quarta (29), Savannah ao lado de âncora Hoda Kotb anuncia a demissão de Matt Lauer. (Foto: Divulgação)

Antes do desabafo, Savannah lera na íntegra uma declaração oficial de Lack  (”uma clara violação dos padrões de comportamento em nossa empresa”), que explicava de que a denúncia contra Lauer não era um fato isolado, por isso se justificava a rápida demissão. Ao longo da quarta-feira, outras mulheres entrevistadas pelo jornal The New York Times e pela revista Variety acusaram o jornalista de assédio. A mais séria delas partiu de uma ex-funcionária da NBC, de nome não revelado, que, em 2001, foi sexualmente atacada por Lauer no escritório deste. A ex-subordinada revelou ter desmaiado após o encontro e de precisar ser atendida por uma enfermeira da empresa.

Ela não denunciou o incidente na época por medo “de perder o emprego” e por “se sentir envergonhada”. Outras funcionárias da NBC entrevistadas pelo Times revelaram mais detalhes do modo predatório de Lauer agir em seu escritório, onde ele tinha até um interruptor instalado debaixo de sua mesa de trabalho que trancava a porta, sem que ele precisasse se levantar da cadeira e dar bandeira de suas verdadeiras intenções. Em certa situação, Lauer abaixou as calças na frente de uma subordinada e mostrou-lhe o pênis. Para outra, comprou-lhe um brinquedinho sexual de presente e incluiu um cartão com a mensagem “espero usá-lo em você”. O jornal Daily News desta quinta (20), chama o escritório do jornalista, num dos prédios mais bonitos da cidade e com murais do artista mexicano Diego Rivera, de “calabouço do sexo”.

Tablóides locais desta quinta (30): NY Post coloca logotipo da rede NBC em cima da braguilha de Lauer; Daily News o chama de pervertido. (Foto: Reprodução)

Na manhã desta quinta, Lauer manifestou-se oficialmente, com um pedido de desculpas. “Não existem palavras para manifestar a tristeza e o arrependimento da dor que causei em outras pessoas por meio de palavras e ações. Para as pessoas que magoei, eu realmente sinto muito”, começava a nota. O jornalista diz que algumas das acusações contra ele são “inexatas”, mas admite que elas são embasadas “em verdades suficientes para me fazer (sentir) humilhado e envergonhado”. O jornalista termina a nota explicando que seu “trabalho em tempo integral”, daqui para a frente, e que “levará muito tempo” para ser executado, será “reparar todo o dano causado e fazer um exame de consciência”.

Em um momento em que a história do sexismo é reescrita nos Estados Unidos, a derrocada de Lauer ilumina um outro aspecto sobre casos de assédio sexual, misoginia e desigualdade salarial tão exploradas pela mídia diariamente: como as redações das grandes emissoras de TV nos EUA, todas com sede no centro de Manhattan (o marco zero de homens se comportando mal), fizeram vista grossa às várias denúncias de abuso perpetrados pelas maiores figuras do jornalismo.

Além de Lauer e Rose, Bill O’Reilly, poderoso âncora da rede conservadora Fox, perdeu o emprego no ano passado. Segundo o New York Times, seis meses antes da decisão da Fox, a emissora chegou a renovar contrato com O’Reilly, mesmo sabendo de novas alegações de abuso sexual contra ele. No caso de Lauer, várias das mulheres entrevistadas pelo Times e Variety alegaram que a NBC sabia da reputação predatória de Lauer e que sua imagem de ser sexualmente implacável era conhecida por entre alguns colegas de redação. O presidente de jornalismo da emissora categoricamente refutou, na quarta-feira, de que a emissora, nos últimos 20 anos, tenha sido informada de qualquer problema na conduta profissional do célebre funcionário.

No set do “Today”, Lauer também aprendia a cozinhar. A modelo Camila Alves fazia participações esporádicas no programa. (Foto: Reprodução)

Outro ponto a vir à tona é o de como a rede NBC conduziu equivocadamente a cobertura jornalística das atuais denúncias de assédio sexual. Especula-se que, por duas vezes, num espaço de um ano, a emissora abriu mão de dar importantes furos de reportagem sobre o fenômeno do movimento #metoo (eu também) para, ou proteger Lauer, ou por ter sido manipulada pelo âncora. A emissora acabou sendo “furada” respectivamente pelos jornais Washington Post e The New York Times.

Em outubro do ano passado, na reta de chegada da corrida presidencial norte-americana, 0 Washington Post publicou a íntegra de uma conversa informal travada entre Donald Trump (que não sabia que estava sendo gravado) com o apresentador Billy Bush, no set do programa de celebridades “Access Hollywood”. No áudio datado de 2005, Trump vangloria-se que “estrelas” geralmente escapam impunemente de situações em que tentam fazer “qualquer coisa” com mulheres, até “pegá-las pela xoxota.”

Ciente da gravação e do impacto que ela poderia poderia provocar na campanha presidencial, a NBC permitiu que Bush desse o furo de reportagem em seu próprio programa na emissora, e também que ele, no processo de edição, apagasse sua participação no episódio. No áudio, Bush é conivente e parece se divertir com os comentários vulgares de Trump.

Em setembro, Lauer entrevistou Hillary Clinton, que divulgava seu novo livro sobre memórias da campanha presidencial. (Foto: Nathan Congleton/NBC)

A emissora começou a perder a paciência com a demora da produção do “Access Hollywood” em deletar a participação de Bush na conversa. Segundo a coluna Page Six, do jornal New York Post, um produtor do programa “Today”, até hoje não identificado pela emissora, muito embora uma sindicância interna da NBC tenha sido colocada em prática, tinha acesso à entrevista e decidiu vazá-la na íntegra ao Washington Post.

Muita gente enxergou o dedo de Lauer por trás da manobra, especialmente porque ela poderia custar o emprego de Bush, recente desafeto do âncora. Com o escândalo político deflagrado e Bush sendo criticado por chauvinismo, ao engajar o diálogo chulo de Trump, o apresentador foi suspenso por uma semana. Depois, demitido.

O ator Robert Redford promove filme novo filme em conversa com Matt Lauer em 26 de setembro (Foto: Nathan Congleton/NBC)

Lauer começou a ter problemas com Billy Bush, que é sobrinho do ex-presidente norte-americano George W. Bush, no ano passado, quando o apresentador foi convidado pela NBC a trocar a redação do “Access Hollywood”, em Los Angeles, programa que comandava desde 2001, e se mudar para Nova York, para fazer parte do “Today”. Bush seria o titular da segunda parte do programa, uma hora em estilo “mesa redonda” e com ênfase em reportagens mais leves, sobre celebridades, exibido logo após duas horas de notícias mais sérias. Lauer, que sempre considerou Bush um rapazola, teria começado a se sentir ameaçado com os boatos de que o novo colega estaria sendo lentamente treinado pela emissora para um dia assumir a função de âncora do “Today”.

Tudo azedou em agosto de 2016, no Rio de Janeiro, durante as Olimpíadas, quando os estilos “cuca-fresca” de Bush e centralizador de Lauer entraram em conflito. Andando pela praia de Copacabana, Bush topou com o nadador Ryan Lochte, em sua primeira aparição pública após o infame incidente no qual o esportista americano mentiu sobre o fato de ter sido assaltado à mão armada num posto de gasolina carioca. Bush gravou a rápida entrevista com seu iPhone e remeteu o arquivo para a redação da NBC, em Nova York, sem avisar Lauer, que já tentava marcar uma entrevista oficial (que acabou acontecendo dias depois, num hotel de Nova York) com Lochte.

No Rio de Janeiro, em agosto, o meteorologista Al Rooker, a âncora Hoda, o desafeto Billy Bush e Lauer. (Foto: NBC)

Muito ainda se especula dos verdadeiros motivos da NBC ter perdido um dos maiores furos jornalísticos deste ano: as denúncias de assédio sexual contra Harvey Weinstein. Concomitantemente, o jornal New York Times e a rede NBC trabalhavam em reportagens próprias sobre o ex-dono da Miramax, produtor dos filmes “Shakespeare Apaixonado” e “Chicago” e responsável por distribuir “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles, nos Estados Unidos. Um time de três repórteres do New York Times, tinha carta branca da empresa em prosseguir com a investigação, mesmo que o jornal tenha sido intimidado por advogados de Weinstein, quando este tomou conhecimento da preparação da reportagem.

Na NBC, o apoio ao processo de apuração do repórter Ronan Farrow, que é filho de Mia Farrow e do diretor Woody Allen (Ronan e o pai biológico não se falam desde 1992, quando foi revelado que o icônico cineasta mantinha um romance extra-conjugal com a enteada Soon-Yi Prévin, que resultou no casamento oficial dos dois cinco anos mais tarde), era mais frouxo. Muito embora Farrow tenha conseguido gravar uma entrevista com a atriz Rose McGowan, a criadora do hashtag “metoo”, denunciando Weinstein, a rede NBC disse não estar satisfeita com a apuração da reportagem e que tinha “problemas” com algumas das fontes entrevistadas por Farrow.

Em vias de não renovar contrato com Farrow para este continuar sendo colaborador do “Today”, a NBC não se importou do funcionário vender sua reportagem para outro veículo. Farrow imediatamente ofereceu a matéria para a revista The New Yorker. Mesmo que o New York Times tenha eventualmente saído na frente The New Yorker, foi o artigo da revista que trazia as mais sérias acusações contra Weinstein. Farrow conseguiu que três mulheres confirmassem o fato de terem sido estupradas pelo produtor, declarações de assédio feitas pelas atrizes Mira Sorvino e Rosanna Arquette, e ainda uma evidência exclusiva: um áudio que a modelo italiana Ambra Battilana Gutierrez gravou com o auxílio da polícia de Nova York, que investigava uma denúncia de assédio sexual do produtor contra ela. Na gravação, Weinstein, enquanto, quase sem paciência, insiste em que a modelo entre em seu quarto de hotel, admite tê-la assediado anteriormente.

Na emissora concorrente ABC, jornalista Ronan Farrow promove artigo bombástico que a NBC abriu mão. (Foto: Reprodução)

A demissão de Lauer agora abre espaço para teorias de conspiração. Teria a NBC vetado a matéria com medo de que Lauer pudesse ser a próxima vítima? Ou a emissora estaria protegendo uma figura famosa? Noah Oppenheimer, chefe da NBC News, refuta a segunda teoria. “A ideia de que a gente tentaria acobertar denúncias contra uma pessoa poderosa é extremamente ofensivo para todos nós (da NBC)”, disse o jornalista num encontro com o staff jornalístico da empresa. Oppenheimer explicou aos funcionários de que a pauta oferecida por Ronan era bem diferente da resultado final veiculado na The New Yorker. Segundo ele, Farrow “expandiu bem o alvo da reportagem”, criando “uma tonelada extra de extraordinária apuração” ao levar sua pauta para outra empresa de comunicação.

A avalanche de predadores sexuais abatidos desde a publicação das matérias do Times e da New Yorker inclui nomes como os do ator Kevin Spacey, do fotógrafo de moda Terry Richardson e do cineasta Brett Ratner (de “As Panteras”). Ao cobrir essas notícias, quase que diariamente em seus programas, antes de serem demitidos, Lauer e Rose se revelaram hipócritas. Em recente debate para estudantes de jornalismo em Nova York, Rose classificou as denúncias feitas por mulheres de um momento histórico e “transformador”. Já Lauer, ao entrevistar com exclusividade o ex-âncora Bill O’Reilly, chegou a elogiar a bravura das mulheres que se manifestaram publicamente e custaram o emprego do último na Fox.

Hipocrisia: em setembro, Lauer entrevista ex-âncora Bill O’Reilly, que perdeu o emprego na Fox depois de ser acusado de assédio sexual. (Foto: Nathan Congleton/NBC)

Na noite de quarta, Lauer esteve ausente – pela primeira vez em 20 anos – de um tradicional evento da rede NBC: a cerimônia de iluminação da gigantesca árvore de natal no Rockfeller Center, uma das grande atrações turísticas de Nova York até começo de janeira. Na manhã desta quinta, a demissão do âncora foi mais uma vez a notícia principal dos programas matutinos da TV e, novamente tentando disfarçar a voz embargada, a co-âncora Savannah Guthrie leu o pedido desculpas dele na íntegra.

Na rede CBS, a co-âncora Gayle King, do programa “CBS This Morning”, ilustrou bem o tom da imprevisibilidade do fenômeno atual ao pegar o iPhone dela da bancada e, do aparelho, ler ao vivo a declaração de Lauer. “Deixo o celular bem perto de mim agora, pois a gente não sabe quando o próximo escândalo vai acontecer”, explicou ela aos telespectadores.

Hoda, Savannah, Roker e o âncora Lester Holt durante a cerimônia de iluminação da árvore de natal do Rockefeller Center, na noite de quarta (29), em NY. (Foto: Eric Liebowitz/NBC)