Lygia Pape ganha primeira grande retrospectiva nos EUA

Marcelo Bernardes

Os mais importantes museus de Nova York estão vivendo um verdadeiro caso de amor com o movimento neoconcretista, originado no Rio de Janeiro em 1959.

Depois de uma abrangente exposição do trabalho de Lygia Clark (1920-1988), organizada pelo Museu de Arte Moderna, o MoMA, em 2014, e antes de uma superlativa examinação da obra de Hélio Oiticica (1937-1980), que o museu Whitney inaugura em julho, o Met Breuer (anexo do Metropolitan especializado em arte moderna) lança amanhã (21) a exposição “A Multitude of Forms”, primeira grande retrospectiva dedicada ao trabalho da artista Lygia Pape (1927-2004) a ser montada nos Estados Unidos.

Organizada pela curadora espanhola Iria Candela, expert do Metropolitan em arte latino-americana contemporânea, a mostra de Lygia Pape não supera, em número de trabalhos expostos, a da abrangente exposição “Espaços Imantados”, organizada no museu Rainha Sofia, em Madri, em 2011. Mas Nova York pode ver duas obras não apresentadas na Espanha: a tela “O Livro dos Caminhos” (1963-1976) e as esculturas “Amazoninos” (1991-1992).

Detalhe de uma das galerias do Met Breuer onde está a série “Amazoninos” (nas laterais) de Lygia Pape. Ao fundo, a instalação “Banquete Tupinambá”. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

O fato de a retrospectiva de Pape ter sido organizada no museu Met Breuer tem caráter bastante especial. A artista carioca era grande fã do prédio modernista criado pelo arquiteto húngaro baseado em Nova York, Marcel Breuer (1902 -1981), em 1966. “Lembro-me que, em nossa primeira visita ao local, quando o prédio pertencia ao museu Whitney, Lygia ficou olhando o piso, o teto, as janelas, as formas generosas do museu, e disse que seria fantástico poder exibir aqui um dia”, diz Paula Pape, filha da artista, em entrevista ao blog, na manhã de hoje (20).

A curadora Candela contextualiza o diálogo entre as obras de Pape com a arquitetura de Breuer. “Trata-se de uma conexão muito clara, pois é uma ligação histórica. O trabalho de ambos cresceu a partir dos legados do avant-garde europeu”, explica a curadora ao blog. “O neoplasticismo, o suprematismo, a Bauhaus, Mondrian e Kazimir Malevich foram abraçados por ambos”, prossegue. “Lygia foi uma grande herdeira daquele movimento, não só criando um vocabulário universal de cores e formas, mas como também guiando todas aquelas influências em direção completamente inédita”.

“Poema-Luz”, de Lygia Pape, e uma das janelas do prédio do arquiteto Marcel Breuer: estéticas vindas do avant-garde europeu. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

Como o nome didaticamente oferece, a mostra “A Multitude of Forms” reúne o trabalho de Pape em diversas mídias experimentadas ao longo de sua carreira, iniciada com o concretismo na década de 50, e que incluiu pintura, gravura, escultura, dança, filme, performance e instalação. “Lygia costumava dizer que o grande termômetro de uma exposição vem das pessoas que tomam conta das galerias dos museus”, diz Paula. “E o pessoal responsável pela segurança que encontrei por aqui parece instigado, reagindo com grande interesse pelas obras. É como se estivessem felizes com o que vêem”, conclui.

 

Paula Pape, filha de Lygia, na frente de alguns quadros da série “Relevo”, da primeira fase da artista. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

A obra mais representativa do trabalho de Pape, e que serve de pôster da exposição, é “Divisor” (1968), uma performance em que várias pessoas enfiam as cabeças em buracos abertos num gigantesco lençol branco, trabalho que a carioca explicou ser tanto uma celebração do corpo, espaço e tempo (como boa parte de sua obra), mas também uma crítica à burocracia moderna.

No sábado (25), como uma espécie de complemento para a instalação em vídeo, o Met Breuer vai apresentar, em alguns quarteirões do Upper East Side (onde está localizado o museu), uma “peregrinação” baseada na obra. Paula Pape, que é fotógrafa, vai filmar a performance. “Divisor” foi o primeiro trabalho de Pape que a curadora Candela tomou conhecimento. “Ao fazer minha dissertação em arte pública, rapidamente me interessei pelo trabalho de Pape”, explica. “Ela foi a pioneira em trabalhos em espaços públicos, mudando a face das performances”.

Performance “Divisor”, um dos trabalhos mais conhecidos de Pape. (Foto: Paula Pape @Projeto Lygia Pape)

 

Também chama a atenção a monumental obra “Ttéia, C1” (1976-2004), que encerra a exposição com chave, ou melhor, fios de ouro. A obra é feita por uma sucessão de fios dourados que atravessam o ambiente, dando a sensação de uma tempestade de linhas ou feixes de luz. Onde quer que seja montada, a instalação parece sempre ganhar nova leitura, uma vez que os fios precisam se adequar aos novos espaços ou mudanças na iluminação.

“Ttéia C1”: instalação ficou mais elevada no Met Breuer. (Foto: Marcelo Bernardes)

Não poderia ser diferente no Met Breuer. “O teto aqui não é plano, mas sim de módulos vazados, então foi-se criada toda uma estrutura para afixar as placas que sustentam os fios no teto”, explicou ao blog o engenheiro e artista plástico Ricardo Forte, genro de Lygia Pape. Por questão de segurança, o Met Breuer vetou que “Ttéia” ficasse muito rente ao chão. “Isso nos obrigou a montar a peça numa plataforma de 30 centímetros de altura, quando o normal é 5 centímetros”, explica Forte.

 

A exposição de Pape reúne cinco décadas do trabalho da artista carioca. Paula Pape disse ter ficado “emocionada” já na primeira galeria, onde as séries “Pintura” “Relevo” e “Tarugo”, da fase concretista, foram montadas de maneira criativa. Há galerias especiais para o manifesto neoconcreto, criado por artistas e poetas cariocas, entre as Lygias e Oiticica, também Ferreira Gullar, Amílcar de Castro e Reynaldo Jardim – e para filmes do Cinema Novo, em alguns dos quais Pape colaborou no projeto gráfico.

A proposta do movimento neoconcretista, de favorecer relações mais interativas entre artes e espectadores, é semi-obstruída na exposição do Met Breuer por questões de preservação. As séries “Livro de Arquitetura” e “Poema-Objeto”, livros com elementos arquitetônicos semi-abstratos que as pessoas eram encorajadas a manusear, agora ficam inacessíveis ao tato, trancadas numa caixa de vidro. Mas ainda é possível experimentar, com o auxílio de conta-gotas descartáveis, os sabores da instalação “Roda dos Prazeres” (1967), com vasilhas de porcelana carregadas de líquidos multicoloridos.

Série “Livro da Criação”, agora sem contato táctil pelo público. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

Público, porém, pode usar um conta-gotas para provar o líquido da instalação “Roda dos Prazeres”. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

A retrospectiva Pape é uma das exposições que comemoram o primeiro ano de funcionamento do Met Breuer. A diretora do museu, a inglesa Sheena Wagstaff, que veio do Tate Modern, de Londres, apontou na manhã de hoje que, em 12 meses de funcionamento, o museu teve quatro grandes exposições de mulheres artistas. Começou com a pintora indiana Nasreen Mahamedi (1937-1990), seguida da fotógrafa americana Diane Arbus (1923-1971), da escultora e pintora italiana Marisa Merz, 91, (essa ainda em cartaz até maio) e agora Pape.

Candela ressalta que a igualdade de gêneros, tão discutida hoje nas narrativas artísticas, nunca foi problema no Brasil. “Na verdade, o Brasil sempre foi muito inclusivo nas artes plásticas”, explica. “Mulheres sempre destacaram-se muito cedo, como Tarsila do Amaral (1886-1973), por exemplo. Até hoje essa representação é muito igual, com grandes artistas saídas do Rio, São Paulo e mais recentemente de Belo Horizonte também”.

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Abaixo outras fotos da retrospectiva:

 

Painel de apresentação da exposição. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

Telas da série “Relevo”, da fase concretista de Pape. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

“Experiência Neoconcreta” publicada no Jornal do Brasil, em 1959, em primeiro plano; e a série “Tecelar” ao fundo. (Foto: Marcelo Bernardes)
“Livro de Arquitetura” em primeiro plano; “Livro Noite e Dia” e “Poema-luz” ao fundo. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

Galeria com vídeo da performance “Divisor” e a tela “Livro dos Caminhos”. (Foto: Marcelo Bernardes)

 

“Roda dos Prazeres” toma banho de luz de janela projetada por Marcel Breuer. (Foto: Marcelo Bernardes)
Detalhe da instalação “Amazonino (Mangueira” e ao fundo “Livro do Tempo” (Foto: Marcelo Bernardes)

 

Ttéia C1 (Foto: Marcelo Bernardes)