‘Aposentado’ David Letterman rompe silêncio e critica Trump
Com uma grossa barba branca de aposentado que cultiva desde maio de 2015, quando deixou de apresentar o talk show “Late Show”, programa do fim de noite da rede CBS que comandava desde 1993, David Letterman, 69, aparece na capa da nova edição da revista “New York”. Em entrevista exclusiva, conduzida em duas sessões pelo repórter David Marchese, Letterman discute tema que o tem deixado bastante indignado: o governo Donald Trump.
Letterman entrevistou Trump várias vezes. A primeira delas foi em 1987, quando o apresentador trabalhava na rede NBC, no programa “Late Night”. Ele explica que Trump sempre foi “uma versão cômica de um homem rico”. “Trump sentava-se (para ser entrevistado), e eu começava a tirar uma da cara dele”, diz Letterman à “New York”. “Nunca teve uma réplica por parte dele. Trump era volumoso e massudo, mas você podia derrotá-lo. Ele parecia se divertir, o público ainda mais, e esse era o Donald Trump”.
Após a eleição de Trump, Letterman diz se irritar com o fato de as pessoas ficarem “atônitas” e “reclamarem de tudo o que o presidente fala (ou tuíta)”. “Precisamos dar um basta nisso e, em vez de reclamar, tentarmos encontrar uma maneira de nos protegermos dele. Sabemos que ele é louco. Só precisamos nos defender”.
Letterman diz que o humor, eventualmente, poderá derrotar Trump, se encarregando de normalizar o presidente ou de o transformar em uma figura inofensiva. “O cara ficou com a pele muito sensível”, opina. E cita o caso de Alec Baldwin, ator que interpreta Trump no programa humorístico “Saturday Night Live”, de ter tirado o presidente fora do sério.
Na entrevista da “New York”, o apresentador dispara inúmeras farpas contra o círculo íntimo de Donald Trump na Casa Branca. Letterman chama Stephen Bannon, assessor de extrema-direita do governo Trump, de “Corcunda de Notre Dame” e “supremacista branco”. “Como é que um cara desses se torna estrategista do presidente? Alguém checou (o currículo)?”
Letterman também diz que o vice-presidente, Mike Pence, “o assusta”. Pence, que já comparou casais do mesmo sexo a “colapso social”, apoiou recentemente a nova diretiva anti-gay de Trump, que revogou uma orientação criada por Barack Obama às escolas americanas para que estas permitissem que estudantes transgêneros usassem banheiros compatíveis com a identidade de gênero que escolheram. “Quem diabos (Pence) pensa que é para jogar um pedaço de pau no meio da estrada de alguém que já lida com um conjunto de diferentes dificuldades na vida?”, indaga Letterman.
O humorista revela também que, por um bom tempo, sua figura favorita do governo Trump foi a assessora e diretora da campanha presidencial do republicano, KellyAnne Conway. Ele cita o incidente, no mês passado, quando, ao criticar o fato de a rede de lojas Nordstrom ter rompido parceria com a grife de roupas, sapatos e acessórios de Ivanka Trump, Conway disse na TV para o público ir comprar os produtos da filha do presidente. Trump precisou chamar a atenção da assessora sobre o incidente. “Meu, se esse governo atual decide que uma pessoa do staff precisa de ‘aconselhamento’ – uau!”, alfineta Letterman.
Caso voltasse à TV, Letterman revela que gostaria de entrevistar Trump por cerca de uma hora. “Diria a ele: ‘Donald, nós dois sabemos que você está mentindo. Agora, pára com isso”.
Sobre sua decisão de aposentar o “Late Show” em 2015, Letterman diz que não foi uma imposição que partiu da direção da rede CBS. “Eles não me foderam. Eu mesmo me fodi por ter ficado velho e estúpido”, diz.
Letterman conta que não assiste mais aos talk shows noturnos da TV. Não pelo fato de eles serem transmitidos tarde da noite – a partir das 23h30 -, mas por este ter executado o mesmo trabalho, “com devoção cega”, por cerca de 30 anos. O apresentador admite que o viés político empregado por Jon Stewart, entre 1999 a 2015, no programa “The Daily Show”, da emissora Comedy Central alterou para sempre (e para o bem) o rumo dos talk shows americanos.
O humorista diz ter “ouvido coisas boas” sobre o apresentador Seth Meyers, cujo programa “Late Night”, da rede NBC, é transmitido às 0h30 da manhã. Também que seu sucessor, Stephen Colbert, se “posicionou muito bem ao lidar com o ‘tsunami’ Trump” no programa “The Late Show”, da rede CBS.
Desde que que assumiu o lugar deixado por Letterman, Colbert vinha ocupando a vice-liderança dos talk shows, sempre perdendo para Jimmy Fallon, o titular do “Late Night”, da concorrente NBC. Mas a partir da posse de Trump, Colbert, o mais diligente crítico do presidente nos finais de noite, recuperou a posição, passando a ter o talk show de maior audiência da TV americana.
Sobre o fato de nenhuma mulher comandar diariamente um talk show noturno, Letterman culpa a “inércia” das emissoras em tentar mudar o status quo. Ele diz que Tina Fey e Amy Schumer seriam suas favoritas para o posto de apresentadoras.
Sobre as centenas de entrevistas conduzidas em seus programas, Letterman admite ter sido duro com Paris Hilton, logo depois de a socialite deixar a prisão em 2007, após passar 23 dias no xadrez para cumprir uma condenação por dirigir sem carteira de motorista, que havia sido suspensa anteriormente depois de ela ter sido flagrada embriagada ao volante. No encontro, Hilton disse a Letterman que não queria comentar a passagem pela prisão. E este retrucou: ‘mas é somente sobre isso que quero falar’. “Aquilo a irritou, ela chorou, e eu tive que ligar depois para ela pedindo desculpas. Acho que comprei um carro para ela também!”, zomba Letterman.
Bob Marley foi uma figura que Letterman teria “adorado” entrevistar. “Quando nos deixou (o músico morreu em 1981, aos 36 anos), ele se encontrava politicamente muito ativo”, diz Letterman à “New York”. “Bob era, na época, o músico mais famoso do mundo, que emergiu das mais desesperantes circunstâncias. Não temos uma pessoa como ele hoje em dia, cuja vida, a música e o comportamento seriam capazes de apaziguar as águas da atual discórdia mundial”, diz.
Desde que se aposentou, Letterman revela que precisou lidar com um obstáculo: aprender a manusear o celular.