‘Granada’ de Trump contra a imprensa preocupa John Oliver

Marcelo Bernardes

A quarta temporada da “comédia investigativa” “Last Week Tonight With John Oliver” estreia hoje (15) no Brasil, às 23h30, no canal HBO Plus. Na semana passada conversei com o humorista britânico na sede da rede de TV HBO, centro de Nova York, para uma reportagem publicada domingo (12) na Ilustrada. Abaixo trechos inéditos da entrevista.

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Você disse que é um erro chamar seu programa de jornalístico. Prefere o termo “comédia investigativa”. Por que gosta de fazer tal distinção?

John Oliver – Respeito muito o jornalismo. Jamais iria sujar o nome da profissão, dizendo que também faço jornalismo. Minha equipe, porém, é formada por alguns jornalistas e revisores. Na última temporada do programa, fizemos um quadro de quase 20 minutos de duração sobre o jornalismo, pois estava muito preocupado com o que acontecia com os jornais e noticiários de TV locais. Queria articular para meu público que fazemos parte de uma espécie de cadeia alimentar. Os jornais locais estão no fundo desse ecossistema, servindo de alimento para programas como o meu. Precisamos deles, caso contrário desaparecemos. É por isso que estou tão preocupado com a granada linguística que vem saindo de dentro da Casa Branca no momento contra jornalistas e órgãos da imprensa. Quero que as pessoas continuem protestando a favor dos jornalistas.

 

KellyAnne Conway, assessora do gabinete de Donald Trump, cunhou o primeiro termo infame da atual administração presidencial: “fatos alternativos”. Ela defendia um colega, Sean Spice, porta-voz da Casa Branca, que ofereceu fatos pífios aos jornalistas para explicar que a posse de Trump, em janeiro, não atraiu multidão menor que a de Barack Obama, apesar de que fotos documentassem o contrário. O que achou disso?

Oliver – Não me surpreendeu em nada. A campanha presidencial de Trump abusou desse conceito por 18 meses. KellyAnne, com seu jeito jiu-jitsu de usar a retórica, apenas oficializou o termo para notícias falsas.

 

No começo deste mês, estudantes da Universidade da Califórnia em Berkeley promoveram um quebra-quebra no campus para protestar contra uma palestra do editor do site de extrema-direita Breitbart News, Milo Yiannopoulos. O que achou do protesto?

Oliver – Aquilo não foi o ideal, correto? Interrompe o diálogo em ambos os lados. Mesmo que não concorde com o discurso de uma pessoa, você tem que deixá-la falar. É raciocínio básico. Ninguém saiu bem daquele incidente. O cara (Miilo Yiannopoulos), convenhamos, é um pesadelo, mas é melhor deixá-lo falar, pois existem outras maneiras para a retórica dele soar condenável. Nesses casos, é melhor você não transformar ninguém desprezível em mártir.

John Oliver aparece na capa da atual edição da ‘Rolling Stone’ americana. (Foto: Reprodução)

 

Humor político nos Estados Unidos é dominado por comediantes liberais. É possível rir com piadas de conservadores?

Oliver – Sim, cito o exemplo do Dennis Miller. Ele é muito engraçado, mas também muito direitista. Não concordo basicamente com nada que ele fala, mas me divirto com o jeito que ele fala. Ele é ótimo com trocadilhos. Posso me divertir com a conclusão da piada dele, mesmo que totalmente discorde do sentido dela. Tem muita gente que me odeia como comediante – e muitas vezes isso não tem nada a ver com o fato de eu criticar Donald Trump. Comédia é muito subjetiva. Se você conta uma piada e a pessoa não acha graça, ela imediatamente te odeia. Fui a shows de comédia em que me peguei pensando: ‘que completo idiota’. E odiei o comediante a noite toda.

 

Como o fato de ter sido criado na Inglaterra contribui para seu êxito dentro do humorismo americano? Acha que a diferença de classes sociais que existe em seu país é um dos fatores?

Oliver – Totalmente. Estou hereditariamente preso a essa discussão. Isso é uma coisa bastante interessante sobre os americanos. Eles não estão nem ai para diferenças entre classes sociais. É um pensamento muito mais saudável. Se tivesse que escolher um método a seguir, escolheria o americano. Amigos que fiz aqui não entendem os ressentimentos de classe social arraigados que sinto, de que posso imediatamente pré-julgar uma pessoa a partir do sotaque dela. Tem um cara na equipe de meu programa que também é inglês, de uma região do Reino Unido cujo sotaque sou bastante familiarizado e me sinto confortável. Caso esse cara falasse de outra maneira, eu ficaria bem tenso (risos). Eu sei, eu sei, é patético. É uma coisa que gostaria de não ter em mim. Também acho que, em geral, comediantes são uma espécie de forasteiros. Por ser de outro país, quando abro a boca por aqui, as pessoas se interessam em ouvir por alguns minutos, o que me dá uma certa vantagem.

 

O limite do conteúdo permitido no humorismo político americano continua a surpreender muita gente. Você se considera um privilegiado por ter uma carreira de sucesso num país onde tudo pode ser satirizado sem grandes problemas?

Oliver – Muito. Penso no Bassem Youssef, que tinha o programa “Al-Bernameg” no Egito, que era similar ao meu. Ele sofreu constante pressão política. A família dele foi ameaçada e o programa dele teve que ser cancelado em 2014. A decisão dele foi totalmente justificada. Por conta de exemplos como esse, é que uso a porra da minha liberdade ao extremo. Vivo num país onde a liberdade de expressão é garantida pela constituição e trabalho numa emissora de TV que não tem ou depende de anunciantes. Fizemos quadros agressivos contra empresas como a General Motors, a Herbal Life. Uma merda dessas jamais decolaria numa emissora comercial de TV.

 

Você nunca enfrentou pressão externa por conta de alguns quadros de seu programa?

Oliver – Sempre que fazemos uma investigação sobre uma empresa, por exemplo, entramos em contato com ela. Por vezes nossa conversa ocorre semanas antes de irmos ao ar. Cobramos informações, explicamos o conteúdo de nossa reportagem. Quando a gente fez uma matéria sobre cigarros, tínhamos um canal aberto com o pessoal da Philip Morris, pois queríamos a opinião oficial deles. Discordamos de tantos pontos ao longo do processo de apuração que, quando finalmente apresentamos o programa, eles não foram surpreendidos pela nossa abordagem. Eles podiam até não concordar com a conclusão que apresentei, mas era impossível discordarem dos fatos apresentados. Eles até que poderiam nos processar. Mas por temos todos as informações checadas e por estarmos sendo transparentes com eles desde o início, um processo desses seria custoso demais, um desperdício de dinheiro. É claro que as pessoas odeiam o que fazemos, mas jamais erramos. Se dermos fatos errados num programa, este poderá ser o último que fazemos. Não temos espaço para ‘fatos alternativos’ (risos).

 

E a rede HBO? Eles nunca reclamaram? Apesar de não terem anunciantes, eles podem perder a licença de transmissão em caso de abuso.

Oliver – Acho que só pisei na bola uma vez: minha entrevista com o Edward Snowden (feita na Rússia em 2015). Falei para a emissora depois de a entrevista ter sido conduzida. Tratava-se de uma dessas situações que era melhor se desculpar mais tarde, do que pedir autorização antecipada – e ela ser negada. Quando contei a eles o que tinha feito, a HBO disse: “OK, vamos exibir”.