Woody Allen volta à TV dando recado aos eleitores indecisos

Marcelo Bernardes

Os créditos de abertura de “Crisis in Six Scenes” (Crise em seis cenas), novo trabalho do diretor Woody Allen, 80, não começa com o piano de Bill Evans, a bateria de Art Blakley ou o clarinete de Jimmy Giuffre, embora esses famosos jazzistas estejam representados na trilha sonora. Allen preferiu uma novidade: o rock psicodélico da banda Jefferson Airplane. A canção “Volunteers” – cuja letra diz “olhe o que acontece lá fora nas ruas/tem uma revolução/vamos pra revolução” – ilustra bem um período raramente visitado pelo cineasta: o fim dos anos 60, durante o apogeu das manifestações anti-Vietnã, bombas napalm, hippies em Woodstock, e do partido das Panteras Negras.

Outra inovação: “Crisis” não pode ser vista nos cinemas. A produção está disponível desde sexta (30), para o streaming, na website de comércio virtual do Amazon. O Amazon Studios, braço de entretenimento da empresa criada por Jeff Bezos, famoso por produzir “Transparent”, agora tem contrato de exclusividade com Allen.

Não inteiramente alienígena ao formato da TV (Allen escreveu programas no início de sua carreira), o cineasta aproveita o interesse das emissoras e das novas plataformas de streaming pelos auteurs, e se junta a um time que inclui notáveis como Steven Soderbergh, David Lynch, Jane Campion, Martin Scorsese, David Fincher e Michael Mann, entre outros. Allen, porém, decidiu ser bem malandro nessa nova empreitada. Sua série “Crisis in Six Scenes” é na verdade um longa-metragem disfarçado, editado em seis capítulos, com 23 minutos de duração cada um.

Colocado frente à sua recente obra cinematográfica, para efeitos de comparação, “Crisis” tem roteiro e estrutura tradicionais e não propicia nenhuma deliciosa surpresa como em “Ponto Final – Match Point” ou “Meia Noite em Paris”.  Mas mesmo usando o piloto automático na TV, Allen consegue manter as risadas com piadas sobre radicalismo político, Mao Tse-tung e um time de yentas (bisbilhoteiras) que rouba a cena da popstar Miley Cyrus. Isso mesmo! A Hannah Montana, quem diria, foi parar no universo woodyallenesco.

Woody Allen dirige Miley Cyrus em "Crisis in Six Scenes". (Foto: Divulgação)
Woody Allen dirige Miley Cyrus em “Crisis in Six Scenes”. (Foto: Divulgação)

Em “Crisis”, Allen fala sobre os anos 60, mas está mesmo interessado no atual momento político dos Estados Unidos. Faz piadas sobre a politicagem em Washington, alerta que ditadores “tomam temporariamente nossas liberdades civis” e reitera, em diálogos que surgem em diversas partes da trama, sobre a importância do voto numa eleição (“mudanças surgem numa cabine eleitoral” ou “a gente não explode uma bomba: a gente vota”). Até que seria uma boa ideia para a candidata democrata Hillary Clinton, que pode perder um bocado de votos (ou até a eleição) por causa dos eleitores indecisos, que não vão votar em Donald Trump mas que também se sentem temerosos em apoiá-la por causa da falta de transparência de sua campanha, usar trechos da série de Allen em seus anúncios eleitorais na TV.

Na série da Amazon, Allen interpreta Sidney J. Munsinger, um escritor que queria ser Chekov ou J.D. Salinger, mas acabou produzindo um livro dúbio: “Let There Be Light” (Que haja a luz), sobre um “proctologista que se depara com Deus nos mais estranhos lugares”. Sem sucesso, foi ganhar dinheiro de um jeito “vergonhoso”: como publicitário numa agência da Madison Avenue, em Manhattan. Gaba-se de ter enganado os consumidores e agradado um cliente do ramo de sorvetes, ao criar novo sabor de sucesso. “Pediram para eu minimizar a ênfase no açúcar e na gordura, então tive a ideia de chamar o produto de ‘Sorvete Ortopédico’”, explica.

Munsinger vive com a mulher Kay (Elaine May), uma terapeuta de casais que, eventualmente, organiza um clube de leitura com as tais hilárias yentas. Certa noite, ao deixar o alarme da casa desligado, o escritor é acordado pela esposa, assustada com o barulho feito por um possível ladrão. “São em momentos como esse que gostaria de não ter lido ‘À Sangue Frio’: eles cortaram a garganta do senhor Clutter”, diz Munsinger à mulher, se referindo ao famoso livro de Truman Capote, sobre o real e brutal assassinato de uma família no interior do Kansas, em 1966.

Woody Alllen com Elaine May (de taça na mão) e as yentas do clube de leitura. (Foto: Reprodução)
Woody Alllen com Elaine May (de taça na mão) e as yentas do clube de leitura. (Foto: Reprodução)

O ladrão é, na verdade, uma conhecida de Kay: a jovem Lennie Dale (Miley), militante do “Exército de Libertação Constitucional” que, ao fugir da prisão, atirou num policial. Agora está sendo procurada pela polícia. Ao dar abrigo para a foragida, enquanto a jovem trama fuga para Cuba, Kay e o marido vão se envolvendo em mil trapalhadas e se implicam cada vez. Munsinger, que sempre se opôs em ajudar Lennie, pensa sobre os problemas que o gesto de boa ação da esposa poderá lhe causar: “eu sou bem do tipo de pessoa que é estuprada nas prisões: tenho a pele clara e um corpo, digamos, bem proporcionado!”

Lennie, uma marxista comilona, despreza Munsinger, que ela acha ser senil, enfadonho e “liberal de limusine”. “Vocês plutocratas se sentem perdidos sem seus luxos”, diz a jovem. Em uma das cenas mais engraçadas, Lennie explica a Kay e Munsinger que a origem de sua militância radical pode ser creditada ao fato de ela ter transado com um negro e também um judeu. “Do negro tentava absorver um pouco da raiva política. Já o judeu me ajudava a extravasar um pouco das neuroses e da culpa de ser classe média.”

Kay passa a se afeiçoar ainda mais pela jovem contraventora. “Ela é do tipo ‘faz todas as coisas certas’: é pró-paz, pró-negros, pró-mexicanos, pró-direitos das mulheres”. Kay também aceita recomendações de Lennie para seu clube de leitura. Em pouco tempo, as amigas começam a ler, discutir e a citar Karl Marx e Mao Tse-tung. “Política é uma guerra sem derramamento de sangue. Guerra é política com derramamento de sangue”, diz Kay ao marido, citando Mao ou, segunda uma das amigas, “aquele que veste jaquetas cheias de estilo”. Munsinger repreende a esposa: “você não está na idade de pensar em política radical, mas sim em prótese no quadril”.

Em "Crisis", Allen ajuda a militante interpreta por Miley Cyrus fugir para Cuba. (Foto: Reprodução)
Em “Crisis”, Allen ajuda a militante interpreta por Miley Cyrus fugir para Cuba. (Foto: Reprodução)

Allen também faz piadas sobre o formato televisivo com o qual ele agora flerta. Ao reclamar num jantar sobre sua falta de sorte como escritor, um amigo o aconselha: “talvez a TV seja uma alternativa mais fácil para você”. Numa cena que já nasce clássica, e parece ter sido tirada de “Zelig”, Allen vai à Manhattan tentar vender a ideia de um programa de TV. Diante de um festival de clichês e platitudes que oferece aos executivos de uma emissora, esses encurtam o encontro. Mais tarde, Munsinger diz à mulher: “talvez eu deva abandonar toda essa ideia idiota de fazer TV e arriscar, pela última vez, escrever um livro”.

Allen sempre mostrou uma tara platônica por jovens heroínas, de Mariel Hemingway (em “Manhattan”, 1979) à Blake Lively e Kristen Stewart (em “Café Society”, 2016), mas em “Crisis” tenta o dito popular “panela velha é que faz comida boa”. Acerta em cheio em ir para a cama com uma parceria de 84 anos de idade: Elaine May, cujo último trabalho como atriz foi a comédia “Trapaceiros”, dirigida por Allen em 2000 (May, dramaturga de sucesso, teve duas indicações para o Oscar pelos roteiros dos filmes “O Céu Pode Esperar” e “Cores Primárias”). A dobradinha Allen e May é simplesmente campeã.

Como não existem interpretações ruins em filmes de Allen, Miley não faz feio. Mas ela é como Lady Gaga na série “American Horror Story”: não compromete, mas também não empolga. O papel de Miley também não é fácil: Lennie é arrogante, ingênua e intragável. Scarlett Johansson, outra musa de Allen, talvez pudesse ter sido uma alternativa melhor. Vale lembrar que depois da “Hannah Montana”, Woody Allen vai atacar de “O Clube do Mickey Mouse”: o próximo popstar a juntar o elenco do diretor é Justin Timberlake, com quem Allen filma no momento, em Nova York, a sua produção para 2017. Dessa vez, para os cinemas.