Acidente aéreo em NY rende novo triunfo para Clint Eastwood
Na gélida tarde de 15 de janeiro de 2009, o voo 1549 da companhia US Airways partiu do aeroporto de LaGuardia, em Nova York, com destino a cidade de Charlotte, no estado da Carolina do Norte. Seis minutos depois da decolagem, a aeronave, um Airbus A320, colidiu contra uma revoada de gansos-do-Canadá. Três dessas aves foram despedaçadas pelos dois motores do avião, que deixaram de funcionar. O comandante Chesley “Sully” Sullenberger (65), há 30 anos na empresa, teve 208 segundos para tomar a maior decisão de sua vida: salvar os 150 passageiros e cinco tripulantes.
“Estaremos no (rio) Hudson”, avisou Sullenberger ao controlador de voo. Foi a última comunicação entre piloto e torre de controle. Para seu supervisor, o controlador, com voz trêmula, reportou: “contato com o radar perdido”, frase padrão para designar o inevitável: a queda de um avião.
De fato, a ação de Sullenberger durante esses dramáticos 3 minutos e 28 segundos o colocou no meio do Hudson. Ao pousar de barriga no rio que acumulava fina crosta de gelo (a temperatura na cidade no dia era -6c), o piloto conseguiu manter a aeronave e a vida de 155 pessoas intactas. Antes de pousar, ele ainda teve tempo de escolher uma área do rio, próximo ao centro de Manhattan, onde o resgate seria fácil e rápido. A primeira balsa a prestar socorro chegou quatro minutos depois. Cerca de 24 minutos mais tarde, todos os passageiros e tripulantes já estavam em terra firme, virtualmente quase sem nenhum arranhão, apesar de alguns casos de hipotermia e uma aeromoça com um corte profundo na canela. Ao salvar passageiros e tripulantes, Sullenberger foi responsável pelo que a imprensa nova-iorquina batizou de “o milagre no Hudson”.
Em “Sully – O Herói do Rio Hudson”, 35o. filme dirigido pelo ator e cineasta Clint Eastwood, o ato de heroismo do comandante Sullenberger finalmente é transportado para tela grande, filmado com câmeras do sistema IMAX. O filme será lançado amanhã (9) nos Estados Unidos e chega aos cinemas brasileiros em dezembro. O piloto é interpretado por Tom Hanks (60), que deixou crescer o bigode e tingiu o cabelo de branco (segundo o ator, não foi tarefa fácil encontrar o tom certo). O filme é brilhante e surpreendente, com uma narrativa esperta, que não deixa o espectador esperando 90 minutos por sua cena mais dramática.
Trata-se de mais um grande acerto da carreira de Eastwood, que aos 86 anos, se recusa (e perdão pelo trocadilho) a ligar o piloto automático. Seu mais novo filme chega após o megasucesso “Sniper Americano” que, há dois anos, rendeu US$ 550 milhões mundialmente aos cofres do estúdio Warner Bros. O mesmo pode ser dito sobre Tom Hanks, um dos raros atores contemporâneos a personificar bem o herói americano honesto e simples, à la James Stewart. Este é o terceiro grande papel do ator sem intervalos desde 2013 quando ele rodou “Capitão Phillips”, produção do cineasta inglês Paul Greengrass sobre o caso real do capitão de um cargueiro que teve sua embarcação tomada por piratas somalis e foi feito refém em 2009, e “Ponte de Espiões”, colaboração com o diretor Steven Spielberg, em que interpreta um advogado que defende um espião soviético preso pelo FBI no final da década de 50.
“Sully” é baseado no livro autobiográfico “Highest Duty” (o mais alto dever), que o piloto lançou em 2009, e virou best seller. Ele foi adaptado pelo roteirista Todd Komarnicki. Existem rápidos flashbacks da juventude de Sullenberger, que foi piloto da Força Aérea americana entre 1973 a 1980. O piloto, já na condição de herói, também aparece em vários programas de TV logo após o acidente. O ex-apresentador de TV David Letterman faz uma participação especial, recriando a entrevista que fez com Sully e tripulação em seu programa. Há também cenas engraçadas dos 15 minutos de fama experimentando pelo piloto. Ao entrar num bar no centro de Nova York, o dono o reconhece e oferece um aperitivo que acabou de criar em sua homenagem: “é vodca Grey Goose (ganso cinza) com um respingo de água”.
Mas Eastwood e o roteirista estavam mais interessados em outro aspecto pouco divulgado da história e ignorado, em sua maior parte, pela mídia: o período em que Sullenberger e seu copiloto Jeff Skiles (interpretado por Aaron Eckhart) foram investigados pelo Comitê Nacional de Segurança no Transporte (tradução da sigla em inglês NTSB, espécie de Cenipa dos EUA). Durante este período, reputação, carreira e o ganha pão do comandante Sullenberger estavam em jogo, caso ficasse comprovado que o ato heróico dele tinha, na verdade, colocado a vida de 155 pessoas em risco.
Após os motores do Airbus terem sido comprometidos, a torre de controle ofereceu a Sullenberger duas opções: voltar para o aeroporto LaGuardia ou pousar em outro próximo, o de Teterboro, em Nova Jersey. Pelos cálculos do comandante naqueles 208 segundos de drama, nenhuma alternativa seria possível: o avião colidiria contra alguns prédios de Manhattan ou cairia em áreas densamente habitadas. Baseado nas leituras dos sensores da turbina esquerda do A320, que mais tarde provaram ter sido interpretações errôneas, a investigação apontava que Sullenberger poderia, sim, ter voltado para o LaGuardia ou tentado o Teterboro.
As cenas de embate entre o trio de investigadores do NTSB com Sullenberger e seu copiloto são tão fascinantes e dramáticas quanto as cenas de pane do avião. Em entrevista ao Wall Street Journal, Komarnicki, disse que o enfrentamento entre piloto e investigadores é um “verdadeiro faroeste”, com “tiroteio verbal”. Nesta semana, Robert Benzon, um dos investigadores da NTSB, protestou contra a caracterização negativa do comitê feita pelo filme de Eastwood. “Não somos a KGB. Não somos a Gestapo”, disse ele a um repórter da agência de notícias Associated Press. Segundo Benzon, investigações assim contribuem para alertar fabricantes de aeronaves, a indústria, os sindicatos e o governo sobre todas as possíveis falhas que podem ter contribuído para um acidente. No caso do voo de Sullenberger, a investigação apontou 35 recomendações de segurança que poderão prevenir futuros acidentes.
“Sully” começa com cena chocante. O Airbus A340 vai perdendo altitude ao sobrevoar o bairro do Bronx, tira uma fina dos arranha-céus do centro de Manhattan, até bater uma de suas asas na quina de um prédio e explodir. Trata-se de um dos vários pesadelos de Sullenberger, sofrendo de stress pós-traumático, durante a fase preliminar da investigação, que foi conduzida num hotel do Baixo Manhattan, a poucos quarteirões de distância do World Trade Center. Um membro do sindicato dos aeronautas, que leva uma troca de roupa nova para Sullenberger, diz ao piloto: “Fazia um bom tempo desde que Nova York recebia notícias boas assim, especialmente em se tratando de aeronaves”.
O jazz piano que Eastwood compôs para a trilha sonora do filme permeia os momentos de depressão do piloto. Todo o contato que tem com a mulher Lorrie (a atriz Laura Linney), que está na propriedade do casal na Califórnia, inundada por repórteres no jardim, é feito via telefone. Sullenberger ganha beijinho da maquiadora de TV e abraço apertado da gerente do hotel onde fica hospedado, mas ele está focado demais para tirar proveito da fama súbita.
Eastwood, que já havia rodado “Bird”, sobre o saxofinista Charles Parker, em Nova York, voltou a filmar na meca do liberalismo político, o que vai contra a atual e atuante tendência direitista do cineasta (ele apoia Donald Trump). Raríssimos são os erros de caracterização da cidade, até porque Eastwood contou a participação de vários integrantes que trabalharam na verdadeira operação de resgate. O único fora, mas que não compromete, é que Eastwood não eliminou os novos prédios que foram erguidos e estão mudando o visual na região do acidente, o chamado Hudson Yards. O diretor faz até uma “participação especial” no filme: um poster gigantesco do filme “Gran Torino”, mostrando close-up do rosto de Eastwood, aparece em uma das cenas em que Tom Hanks faz jogging na região do Times Square.
São duas as sequências que detalham o acidente. E elas são completas, com todo o drama experimentado pela tripulação e passageiros. Os econômicos diálogos na cabine entre Sullenberger e o copiloto são literalmente uma transcrição fiel da gravação da caixa preta resgatada no local e analisada pelo NTSB. Em entrevista recente à revista Parade, Hanks disse que ao se encontrar com Sullenberger para discutir o papel, este o alertou de que não existe espaço para “prosinha” ou “conversa casual” na cabine até o avião alcançar altitude. “Se não soubesse disso, Aaron Eckhart e eu teríamos falado sobre beisebol, churrasco ou garotas”, disse o ator.