Charles Bukowski faz crônica de um amor louco pelos gatos
O escritor Charles Bukowski (1920-1994) gostaria que alguns de seus gatos tivessem sido batizados com nomes literários como Ezra, Céline, Turgueniev, Ernie, Fiódor e Gertrude. “Mas sendo um cara legal, deixei minha esposa escolher os nomes e eles viraram: Ting, Ding, Beeker, Bhau, Feather e Beauty”, escreveu o autor de “Crônica de um Amor Louco” e “Notas de um Velho Safado” em manuscrito de 1990.
Na coletânea “Charles Bukowski on Cats”, editado por Abel Debritto (estudioso da obra do escritor), cartas, contos, poemas e textos de Bukowski – muitos até então inéditos – são reunidos seguindo um tema central: o amor do poeta pelos felinos. O livro acabou de chegar às lojas americanas.
Em 1990, Bukowski já havia acumulado nove gatos. Alguns moravam na casa do escritor, na Califórnia, e dormiam na cama com ele, acordando-o bem cedo, via miados, mordidelas e arranhões nos móveis, para que pudessem sair para o quintal. Lá, eles se juntavam com outros membros da gangue peluda, que foram surgindo na calada de noite, “em sua maioria de becos escuros”, e ganhando a afeição do escritor, chegando a dividir a cozinha com Bukowski, onde ganhavam nacos de presuntos ou atum enlatado.
Nos textos, Bukowski relata situações cotidianas, muitas delas protagonizadas pelo gato preto gordo Butch Van Gogh, que perde uma orelha depois de uma disputa territorial com outro gato da vizinhança. Ou o branquinho sujo Manx, um verdadeiro sobrevivente, tendo sido baleado e atropelado duas vezes, uma delas por um amigo bêbado de Bukowski que deu marcha-ré ao deixar a garagem da casa do escritor e pinchou o coitado. Afortunadamente, Manx não tinha usado todas suas sete vidas.
Butch é um pestinha. Pula na banheira com água quente, enquanto Bukowski fumava uma cigarrão e lia a revista “The New Yorker” da semana, e defeca em cima de alguns dos poemas que o escritor havia guardado para doar para arquivos de universidades americanas. Bukowski suspeitava que o gato era uma espécie de crítico literário, querendo expressar um tom de censura aos escritos dele. Quando Butch perde parte da orelha, Bukowski reclama da conta salgada da clínica veterinária e do fato de ela ter até psicólogos para gatos.
Bukowski também conta histórias sobre outros de seus gatos. Um deles não dá a mínima para a Revolução Russa (“ou qualquer outra”) e outro “nunca leu Schopenhauer”. O escritor também coloca gatos em encontros ilustres com Shakespeare, Beethoven e Winston Churchill. O livro, recheado de fotos de Linda Lee Bukoswki, é um ótimo documento para os fãs do escritor e de gatos em geral, e chega a revelar uma faceta suave e, por vezes, sexista do escritor dos marginalizados. A paixão de Bukowski por gatos só não traduzia bem em esquetes. Toda vez que o escritor tentava desenhar um gato, o bichano saia parecido com um cachorro.
Alguns dos melhores trechos de “Bukowski on Cats”:
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“Os árabes admiram o gato, olham desanimados para mulheres e cachorros porque eles oferecem afeição, e afeto é, alguns pensam, sinal de fraqueza. Bem, talvez seja verdade. Eu não exteriorizo muito bem isso. Minhas mulheres e namoradas reclamam do fato de eu guardar minha alma separadamente – e ofereço meu corpo, talvez, puritanamente; mas voltemos ao maldito gato…”
Carta à poetisa Sheri Martinelli, 1960
“Não gosto do amor como uma ordem, como uma busca, ele deve vir a você, como um gato faminto à sua porta”.
Carta ao escritor alemão Carl Weissner, 1964
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“Um pouco antes de deixar Hollywood meu gato meteu-se numa briga, que deixou-lhe com uma orelha de couve-flor. Levei-o ao veterinário ontem. Eles têm dentistas para animais, terapeutas para animais e ainda uma sala de emergência. Temos que fazer uma cirurgia: anestesia, pílulas, pomadas. A conta chega: US$ 82.50. ‘Jesus’, digo ao veterinário. ‘Este é um gato de dez anos, sem bolas, que apareceu num beco. Eu posso achar uma dúzia desses de graça’. ‘Butch Bukowski’, o médico escreve o nome do paciente na ficha. Quando volto para buscá-lo, Butch está com a cabeça enfaixada e parece ter um furo nela. A enfermeira o carrega da sala 6. ‘O que vocês fizeram?’ Pergunto. ‘Uma lobotomia?’ Agora ele senta em cima do fogão e fica me encarando. Butch Van Gogh Artaud Bukowski. Como um amigo um dia me disse: ‘cara, em tudo o que você toca dá merda’. Ele tem razão. Venho masturbando desde que tinha 11 anos de idade”.
Manuscrito de 1978, encontrado em 1990
“Ele (Manx) era apenas um gato estrábico, branco sujo com pálidos olhos azuis. Não vou aborrecê-lo com essa história, apenas dizer que ele teve muito azar e foi um velho cara legal. E ele morreu, como as pessoas morrem, como os elefantes morrem, como os ratos morrem, como as flores morrem, como a água evapora e como o vento deixa de soprar. Os pulmões entraram em colapso na última segunda-feira. Agora ele está no jardim das rosas e ouvi uma comovente marcha tocando para ele dentro de mim. Sei que não muitos, mas alguns de vocês gostariam de saber disso. Isso é tudo”.
Manuscrito de agosto de 1983
“Moro como uma mulher e quatro gatos. Em determinados dias, nos damos todos muito bem. Em certos dias, tenho problemas com um dos gatos. Em outros, tenho problemas com dois dos gatos. Em outros, três. Certos dias tenho problemas com todos os quatro gatos. E com a mulher. Dez olhos me fitando como se eu fosse um cão”
Manuscrito 1985
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“Uma das melhores coisas sobre gatos é que, quando você está se sentindo mal, bem mal – se você apenas olhar para um gato sendo cool do que jeito que eles são, é uma lição de persistência contra todas as probabilidades. E se você olhar para cinco gatos, é cinco vezes melhor”.
Manuscrito 1985
“Ting fica sentado, olhando este datilógrafo. Você acha que ele quer ser um escritor? Ou que foi um no passado? Eu não gosto de poemas engraçadinhos sobre gatos mas escrevi um de qualquer maneira. Agora tem uma mosca aqui e Ting observa cada movimento dela. São 23h45 e estou bêbado…Escute, relaxe. Você já leu piores poemas que esse…E eu os escrevi”.
Poema 1986
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“Ter um punhado de gatos ao seu redor é bom. Se você está se sentindo mal, você apenas fita um gato, e irá se sentir melhor, porque eles sabem que tudo é, do jeito que é. Eles sabem disso. Eles são salvadores. Quanto mais gatos você tem, mais tempo você vive. Se você tem cem gatos, você vai viver dez vezes mais do que viveria se tivesse apenas dez. Algum dia isso vai ser descoberto, e as pessoas terão mil gatos e viverão para sempre. Isso é verdadeiramente ridículo”.
Trecho de entrevista com o ator Sean Penn para a revista “Interview”, setembro de 1987.