Em “South Park”, publicidade nativa vira “inimiga da humanidade”
Stephen Stotch, o papai do bom menino Butters no desenho animado da TV “South Park” pega um jornal para ler na cama e, depois de um artigo sobre violência policial contra um sem teto da cidade, comenta com a mulher. “Você sabe quanto tempo faz desde que consegui sentar, relaxar e ler as notícias? Fiquei acostumado a ler tudo na internet, mas tenho a impressão de que, lá, estou sempre à caça da informação”.
Para ilustrar sua experiência no jornalismo online, a qual Stephen descreve como “se tivesse sido jogado dentro de um buraco negro”, uma montagem surge na tela, usando o fundo giratório da máquina de teletransporte do antigo seriado “O Túnel do Tempo”. “Clico um artigo jornalístico, e o que começo a ler é uma propaganda da (seguradora de carros) Geico”, diz Stephen, tentando-se esquivar de um publieditorial voador.
“Saio daquela janela e tento ler uma reportagem, mas não é um artigo que aparece, é um slideshow. E estou olhando para os piores exemplos de cirurgias plásticas em celebridades. É claro que quero ver a próxima plástica mal feita. Então clico a flecha. Mas não é um outro slide que surge, e sim um anúncio de hidratante. Clico a opção de fechar a janela, mas entra uma outra série de slides com os dez mais assustadores filmes de terror de todos os tempos. Eu só queria ler sobre o que está acontecendo no Oriente Médio!”
Trey Parker e Matt Stone, criadores e roteiristas do irreverente e politicamente incorreto desenho decidiram, na noite de quarta, 25, lidar com dois temas-quentes do momento no mercado mundial de empresas de mídia: a propaganda nativa, anúncio criado para dar a impressão de que se trata de um artigo ou um vídeo de conteúdo jornalístico; e os ad-blockers, bloqueadores de anúncios. Um personagem do desenho, um ex-executivo de uma empresa de mídia, deixa clara a posição dos roteiristas sobre a ascenção do conteúdo patrocinado nos sites de informação. Segundo ele, a humanidade está lidando no momento, com um inimigo “muito pior que o Estado Islâmico”. “Você já notou alguma vez que os anúncios têm inteligência? Que eles ficam cada vez mais espertos, e que estão manipulando tudo o que a gente faz?”, pergunta o executivo.
Nesta temporada, a 19o. do programa e uma das melhores, a ênfase de “South Park” está sendo os temas atuais, sempre com muito sarcasmo. Episódios recentes falaram sobre a violência policial contra negros, a ameaça do pré-candidato presidencial Donald Trump de deportar imigrantes mexicanos e contruir um muro na fronteira entre Estados Unidos e México, a gentrificação de um bairro pobre de South Park após a chegada de um supermercado Whole Foods na cidade, o recrutamento de jovens pelo Estado Islâmico, a fama da transgênero Caytlin Jenner e o sucesso do site Yelp. Nada mais oportuno do que lidar com um assunto que vem crescendo em importância na era digital.
Desde 2013, empresas mundiais de mídia como The New York Times Company; Folha da Manhã, que edita a Folha; Condé Nast, que publica de títulos como “The New Yorker”, “Vanity Fair” e “Vogue”; Hearst Corporation, responsável por revistas como “ELLE” e “Harper’s Bazaar”; e novas mídias como Vice, BuzzFeed e Vox vêm lidando agressivamente com o conceito da publicidade nativa. Trata-se de uma nova forma de gerar receita para essas companhias, depois de um recente período negro para o jornalismo impresso, e não ainda de todo recuperado. No dia 18 de novembro, a Condé Nast anunciou que não vai mais publicar a revista de estilo masculina “Details”, mantendo somente uma presença online para o título que tem 33 anos de existência.
Nos Estados Unidos, o “The New York Times” é pioneiro no campo do conteúdo patrocinado e acabou de ser eleito pela revista “AdWeek”, em edição especial sobre os melhores da mídia em 2015, como o “mais quente praticante da publicidade nativa” (no voto popular, o vencedor foi o BuzzFeed). No terceiro trimestre deste ano, entre julho a setembro, a publicidade nativa foi responsável por 18% do retorno publicitário total da empresa no período.
Margaret Sullivan, a ombudsman do “Times”, em artigo publicado em 12 de novembro, calcula extra-oficialmente que a empresa faturou cerca de US$ 9 milhões com o contéudo patrocinado, 10% a mais do que no trimestre anterior. Em 2014, o rendimento publicitário do “Times” foi de US$ 182 milhões. Recentemente, o jornal publicou sua centésima campanha nativa, para a empresa General Electrics.
A publicidade nativa cria uma tênue linha entre jornalismo e publicidade, exigindo grande responsabilidade de editores de jornais e revistas para manter a distinção entre as duas formas. Troy Young, chefe de contéudo digital da Hearst, encoraja os editores de publicações da companhia, como as revistas “Marie Claire”, “Cosmopolitan” e “Esquire”, a se envolverem na produção do conteúdo patrocinado, a fim de manter o nível de qualidade.
Em julho, a Folha da Manhã criou o Estúdio Folha, núcleo de conteúdo patrocinado. O jornal britânico “The Guardian” tem um time de 130 pessoas produzindo conteúdo exclusivo para marcas. Os leitores são safos, sabem distinguir o contéudo marcado como “pago” e, segundo a ombudsman do “Times”, raramente “objetam”. Obviamente existem os sites que “enganam” os leitores com formas menos sutis e irresponsáveis.
O foco do episódio de “South Park” da última quarta (atenção, spoilers adiante), é o garotinho Jimmy Valmer (dublado por Trey Parker), personagem que tem uma deficiência física e atitude otimista. Um grupo de ex-executivos de empresas jornalísticas diz que Jimmy é “especial”, pois tem a “habilidade mental” de distinguir uma propaganda de um artigo jornalístico. “O ser humano médio já não tem mais capacidade de diferenciar os dois”, diz o executivo-líder, dublado pelo comediante Bill Hader, em participação especial no episódio.
Jimmy, que cursa a quarta série, surge no episódio sendo repreendido pelo diretor da escola. Seu delito foi o de deixar que a palavra “retardado” fosse publicada num texto do jornal, o “Super School News”. “Essa palavra não pertence à nossa escola”, diz o diretor, exigindo explicação.
O editor-chefe mirim defende-se, dizendo de que se tratava de um texto na seção de opinião do jornal, assinado por um outro estudante, que discorda das novas regras na cantina da escola. “Não achei que seria correto censurar as palavras usadas pelo estudante”. O diretor determina que terá de pré-aprovar todo o conteúdo de edições futuras do jornal. Jimmy mantem-se irredutível. Diz que leva muito a sério o cargo. “Não permito anúncios e não quero que as pessoas tenham medo das palavras, interrompendo um novo diálogo”.
Proibido de distribuir o jornal na escola, Jimmy decide entregar a edição de novembro da publicação, de porta em porta, por entre os moradores de South Park. A manchete principal do jornal é ”A regra retardada do diretor politicamente correto”. Ao parar com seu carrinho de pedal na frente da casa do diretor e arremessar o jornal, Jimmy grita: “Chupa!”
O jornal vira sensação na cidade. Logo, o assunto aparece em reportagem do noticiário da TV. “Tive que fugir dos anúncios pois acho que eles estavam evoluindo, sabendo de tudo o que eu gostava, e fiquei com medo. Tentei os bloqueadores de anúncios, mas parecia que, toda vez que os usava, as propagandas ficavam mais espertas”, diz um entrevistado.
Diante do sucesso da edição, Jimmy é procurado por um executivo da empresa Geico, que lhe oferece cheque de USS 26 milhões. “A gente sabe que você não aceita anúncios, então pensamos que poderia fazer algumas reportagens sobre seguros de carros. Apenas reporte os fatos porque todo mundo sabe que acaba economizando ao trocar o seguro antigo pelo da Geico”, diz o representante da empresa. O garoto repudia a oferta. “Isso é publicidade nativa. Enfie seu cheque no rabo.”
O chefe da polícia local, o oficial Bradbrady também bate na porta da casa de Jimmy. “Venha comigo, se quiser viver”, diz ele. Numa espécie de bunker, Jimmy encontra o grupo de ex-executivos da mídia, que tem teoria conspiratória. “Foi nossa culpa”, diz um deles. “A humanidade ficou cansada dos anúncios, então a gente continuou inventando novas maneiras de manter todo mundo livre de anúncios. As propagandas tiveram que se adaptar com os bloqueadores, e se disfarçaram de notícias para poderem sobreviver”.
Jimmy, o salvador, passa por uma série de testes, nos quais precisa distinguir anúncios publicitários de reportagens reais. Passa em todos. Finalmente ele pode ser direcionado a uma sala, onde vai encontrar outra pessoa especial como ele: a também estudante do primário Leslie. A garota é doce e afável. Jimmy mata a charada: Leslie é, na verdade, um novo estágio do anúncio inteligente, e nem ela própia parece saber disso.
Os bloqueadores de publicidade têm se transformado num grande inimigo das empresas de mídia. Em setembro, a Apple jogou ainda mais lenha na fogueira, ao lançar a nova versão do sistema operacional iOS 9 do iPhone e da linha de tabletes, no qual permite o desenvolvimento de aplicativos que bloqueiam anúncios no navegador de internet. O uso desses bloqueadores vem crescendo. Segundo a empresa PageFair, baseada em Dublin, na Irlanda, e que cria ponte entre usuários da rede e sites geradores de contéudo, desenvolvendo ferramentas de anúncios menos invasivos, cerca de 144 milhões de pessoas usam ad-blockers. Entre setembro de 2013 a setembro de 2014, a utilização de bloqueadores subiu 69%, representando 4.9% do total dos usuários mundiais da rede.
Há dez dias, o site Yahoo confirmou que estava por trás da limitação e, em alguns casos, impedimento, do acesso de contas de e-mail de alguns clientes da empresa que usam bloqueadores de anúncio. Tim Armstrong, chefe executivo da empresa Aol, concorrente da Yahoo, vê o problema dos ad-blockers como oportunidade para as empresas melhorarem a qualidade de seus anúncios. “As pessoas estão optando pelos ad-blockers porque ninguém está controlando o conteúdo. Qualquer anúncio hoje pode ‘subir’”, disse o executivo usando o jargão que significa “publicar” na rede. Rick Jaworski, fundador do website de receitas culinárias “Joy of Baking”, disse que os bloqueadores afetam 10% de seus anunciantes. “Não está nos matando no momento, mas isso é como um canário em mina de carvão”, disse ele, usando a expressão tirada da antiga prática de se utilizar o pássaro para detectar a presença de gases venenosos no ar.