Filme “A Travessia” tem erros, omissões e sabor de quero mais

Marcelo Bernardes

Na saída de uma das primeiras exibições públicas de “A Travessia” fui parado por uma repórter do jornal “New York Post”. No filme,  o ator Joseph Gordon-Levitt interpreta o equilibrista francês Philipp Petit que, em 1974, aos 25 anos, anda em cima de um cabo de aço ligando as duas torres do World Trade Center. A repórter queria saber se realmente alguns espectadores estavam experimentando a sensação de vertigem e estômago embrulhado nas cenas ultrarealistas, em terceira dimensão. Dias antes, durante a abertura do Festival de Cinema de Nova York, jornais haviam noticiado que espectadores e críticos de cinema passaram mal na exibição do filme e foram “vomitar no banheiro”. Respondo que não, mas explico que a parte em que Gordon-Levitt deita no cabo de aço é bem aflitiva.

O ator Joseph Gordon-Levitt em cena de "A Travessia". (Foto: Divulgação)
O ator Joseph Gordon-Levitt em cena de “A Travessia”. (Foto: Divulgação)

“A Travessia” é dirigido por Robert Zemeckis, um raro prodígio de Hollywood obcecado pelo desenvolvimento, técnica e uso de novas tecnologias no cinema. Zemeckis, porém, não é roteirista sofisticado, o que fica evidenciado caso se compare os filmes que ele apenas dirigiu e produziu com aqueles em que foi responsável também pelo script. Para cada boa história de “Uma Cilada Para Rogert Rabitt”, “Forrest Gump – O Contador de Histórias” e “Náufrago”, existe um “O Expresso Polar”, onde a técnica impressiona mas o roteiro é fraco. Em “A Travessia”, toda vez que Ben Kingsley e Charlotte Le Bon, respectivamente intérpretes do mentor e da namorada e cúmplice de Petit, entram em cena na primeira metade do filme, a vontade é de esganá-los. E a cidade de Paris, ooh-la-la, nunca foi mostrada tão chata quanto neste filme.

A ação desenrolada no topo do World Trade Center na manhã do dia 7 de agosto de 1974 é magistralmente recriada por Zemeckis. Mas existe algo de errado para aqueles que, como eu, preferem se orientar pelas cores do céu para se ter ideia do horário. No dia anterior à travessia, o filme mostra a namorada de Petit, em rua próxima ao WTC, esperando o equilibrista dar um sinal do alto de umas torres. O grande relógio de um banco marca 18h38 e a cidade começa a escurecer. Agosto é pleno verão no Hemisfério Norte e, na noite de 6 de agosto, o sol foi se esconder tardiamente em Nova York, às 20h06.

Na manhã da proeza, Zemeckis faz licença poética, mostrando a mancha abóbora e avermelhada do nascer do sol, no lado leste da cidade, enquanto o francês começa sua travessia. Mas como ela foi iniciada às 7h15 da manhã, fica difícil de acreditar que o sol já não estaria um pouco mais “alto”. Afinal, naquele dia, ele nasceu às 5h59.

Zemeckis capta a rápida virada do tempo daquela manhã, quando nuvens encobriram o azul do céu e um vento perturbou Petit. Não faltou nem o susto do encontro do francês com uma gaivota, o que realmente aconteceu. Mas ficou de fora o fato de que Petit sentiu os primeiros pingos de uma garoa, o que acelerou sua decisão de finalizar a missão clandestina.

Um erro que passou despercebido: as luzes do topo do Empire State Building, visto a distância, jamais poderiam estar acesas por volta das 6h30 da manhã. A administração do Empire State deixa o prédio na penumbra religiosamente todos os dias, as 2h da manhã. E, na década de 70, quando uma crise de energia elétrica castigou os Estados Unidos, o prédio, para dar bom exemplo, chegou a não acender suas luzes por algumas semanas.

A preparação e a travessia feitas por Petit são tão bem recriadas no filme de Zemeckis, que fica a vontade de saber mais como a cidade de Nova York reagiu a tudo aquilo. Vale lembrar também que o cineasta deixa de fora a duração da travessia: o francês passou 45 minutos em cima do cabo de aço.

O filme mostra que Petit assinou o nome dele em uma das vigas do World Trade Center e ganhou um passe livre (de validade para toda a vida) para visitar o prédio. Mas como o equilibrista pagou por seu pequeno delito e o que acontecia na cidade e no país naquele dia?

Uma visita aos arquivos do jornal “New York Times” mostra que os americanos estavam grudados na TV e nos jornais para saber mais sobre os rumores de que o presidente Richard Nixon iria renunciar seu cargo por conta do escândalo Watergate. No dia do trunfo de Petit, Israel havia bombardeado áreas do Líbano e autoridades brasileiras anunciaram que quase 500 pessoas morreram após epidemia de meningite, 360 das vítimas no estado de São Paulo. Petit foi saudado com fanfarra pelos jornais em suas edições de 8 de agosto. Mas, 24 depois, a cobertura da imprensa encolheu ou sumiu por completo. O presidente Richard Nixon, de fato, anunciou sua renúncia.

Petit foi preso por policiais de Nova York e levado diretamente para um hospital psiquiátrico, onde seu estado mental foi avaliado. Considerado “saudável”, foi para a delegacia, onde foi fichado pelos delitos de “desordem” e “invasão”. Mas o processo acabou arquivado em troca de Petit fazer um demonstração pública de sua arte para as crianças de Nova York. “Minha pena foi uma das mais bonitas penas que poderia receber”, disse o francês.

O local escolhido para Petit “cumprir a pena” foi o lago Belvedere, no Central Park, onde um cabo de aço seria armado entre uma árvore e a torre de um monumento local. Nas três semanas antes daquele espetáculo público, Petit fez inúmeras aparições em programas de TV e recebeu dinheiro para se apresentar em shopping centers da região. Também tentou convencer as autoridades do norte do Estado de Nova York para fazer a travessia nas Cataratas do Niágara. Pedido negado. Mas o prefeito de uma cidade de Nova Jerséi permitiu que Petit atravessasse um rio local. A proeza reuniu 30 mil pessoas e o equilibrista foi remunerado.

A apresentação pública de Petit no Central Park aconteceu dia 29 de agosto de 1974. Ele atravessou o lago Belvedere, andando descalço em cima de um cabo de aço de 180 metros. Centenas de pessoas rodearam o local. Apesar de estar suspenso 24 metros no ar (contra os 411 metros de altura das torres do World Trade Center) e de o lago ser raso, com profundidade menor a dois metros, três salva-vidas acompanharam a travessia. “Petit com certeza morreria ao cair do cabo. Não pelo fato de ele não saber nadar, mas por causa dos inúmeros cacos de vidro no fundo do lago”, disse o responsável pela administração dos parques da cidade.