Entre um café e outro, Patti Smith escreve livro de memórias
Cafeterias têm significado especial na vida de Patti Smith. Foi nelas que a roqueira e escritora leu dezenas de livros essenciais a sua formação, de obras do autor marroquino Mohammed Mrabet ao russo Mikhail Bulgákov, enquanto degustava seu desjejum favorito: uma xícara de café com uma fatia de pão torrado, servido com pequena tigela de azeite de oliva ao lado. Ela até acalentou o sonho de abrir uma cafeteria própria. “Acredito que tudo isso começou enquanto lia sobre a vida em cafés dos beatniks, surrealistas e poetas do simbolismo francês”, revela Patti.
É numa de suas cafeterias preferidas, a ‘ino, no bairro do West Village, e que fechou suas portas em 2013 (um outro café ocupa o lugar hoje na esquina das ruas Bedford e Carmine), que Patti Smith começa a narrativa de “M Train”, biografia que está sendo lançada hoje nos Estados Unidos.
A linha M do trem de Patti significa memória e essa biografia não segue os padrões mais tradicionais do gênero. Nem podia. Depois de lançar o livro “Só Garotos”, em 2010, no qual narrava suas lembranças de juventude e envolvimento com o fotógrafo Robert Mapplethorphe, esperava-se que o trabalho literário seguinte de Patti tivesse o mesmo brilhantismo do último, que conquistou o prestigiado National Book Award (prêmio nacional do livro).
Em “M Train”, Patti usa leveza, fluidez e poesia para contar passagens de sua vida. Lampejos de memórias afetivas da mãe e do pai na Filadélfia são seguidos por descrições de situações mais mundanas como, numa noite recente de natal, a roqueira ter alimentado os gatos dela e ido a um cinema no bairro novaiorquino do Chelsea para pegar uma sessão de “Os Homens que Não Amavam as Mulheres”, baseado no best seller de Stieg Larsson.
Há fatos pitorescos como ter atendido a cliente Katharine Hepburn, atriz que admirava, enquanto trabalhava como balconista numa livraria de Nova York. Também algumas das ideias “quixotescas” da roqueira são contadas, como colher pedras tiradas de antiga prisão na cidade de Saint-Laurent-du-Maroni, na Guiana Francesa, para entregar para Jean Genet, ou escrever um poema de exatas 100 linhas para o escritor chileno Roberto Bolaño, como “uma maneira de agradecê-lo por passar o último intervalo de sua vida apressando-se para finalizar sua obra-prima, ‘2666’”.
O relacionamento com o ex-guitarrista Fred Sonic Smith, com quem Patti foi casada por várias décadas até a morte dele, em 1994, vítima de um ataque cardíaco, é destaque em várias passagens de “M Train”. Todas repletas de admiração. Smith, que era baseado em Detroit, “implorou” para a roqueira se ausentar de sua cidade querida (e as cafeterias) e juntar-se a ele. “Meu desejo ardente por ele permeou tudo – meus poemas, minhas canções, meu coração. Disse adeus a Nova York e as aspirações contidas na cidade, empacotei os bens mais preciosos e deixei tudo para trás. As horas solitárias que passei tomando café, inundadas pelo esplendor dos meus sonhos por cafeterias, foram suficientes para mim”, escreve Patti. No livro, a cantora também publica duas fotos que o casal tirou na Guiana Francesa, nos primeiros meses de casamento, quando decidiram obter um visto de viagem para o Brasil.
A maioria das memórias de Patti são relatadas a partir de viagens que fez por Paris, Tóquio, Berlim, Reykjavík e Cidade do México. Nessas ocasiões, além de visitar cafés e livrarias locais, ela aproveitava para fotografar desde jazigos de Genet, Bertolt Brecht e Sylvia Plath até objetos pessoais de famosos, como a máquina de escrever do escritor Herman Hesse, cama e muletas de Frida Kahlo e as botas do explorador, geógrafo e meteorologista alemão Alfred Wegener, de quem Patti se revela grande admiradora. Ela até dedica um capítulo inteiro sobre a fascinação dela por Wegener.
Literatura é como oxigênio para Patti e dá para se contar nos dedos as passagens do livro nas quais ela não menciona autores como Paul Bowles, Marcel Camus, Isabelle Eberhardt, Robert Musil. J.G. Ballard, Ibsen e Virginia Woolf, entre dezenas de outros. Bulgákov, ela conta, foi descoberto no Café Pasternak, em Berlim. Bowles, de quem nunca tinha ouvido falar, ela “conheceu” numa rua de Nova York, ao topar com o livro “Who’s Who in America” jogado no lixo e aberto numa página que continha a foto do autor. Ao ler o verbete sobre ele, descobriu que os dois dividiam a mesma data de aniversário. Anos mais tarde, finalmente teve a oportunidade de se encontrar com o autor de “O Céu que nos Protege”, em Tânger, para entrevistá-lo para a revista “Vogue” alemã.
Fã das histórias do detetive Kurt Wallander, Patti procurava numa livraria do East Village, em Nova York, por novo livro de seu criador, o escritor sueco Henning Mankell (ele morreu esta semana, aos 67 anos). Não achou, mas descobriu, nas prateleiras de autores de letra M, o japonês Haruki Murakami, cujos livros devorou rapidamente sentada em cafeterias da cidade.
Um dos livros de Murakami, “ A Crônica do Pássaro de Corda”, despertou forte reação na roqueira. “Fui colocada dentro de um movimento de trajetória incontrolável, como um meteoro arremessado contra uma árida e totalmente inocente parte da Terra”. Patti considera o livro de Murakami, ao lado de “2666”, de Bolaño, e “O Mestre e Margarida”, de Bulgákov, como “devastadores”. “Existem dois tipos de obras-primas. Os trabalhos clássicos monstruosos e divinos como “Moby Dick” ou “O Morro dos Ventos Uivantes” ou “Frankenstein”. E também aquele tipo em que o escritor parece infundir uma energia viva dentro das palavras, enquanto o leitor rodopia, se retorce e fica esgotado. O livro de Murakami é assim.”
Seriados de detetives e policiais também são obsessão da roqueira: da série inglesa “Cracker”, estrelada por Robbie Coltrane, às americanas “CSI: Miami” (“Horatio Caine é estoico”, escreve ela sobre o personagem interpretado por David Caruso) e “Law & Order: Criminal Intent”. Ela também revela que gosta cultuada série “Dr. Who”, “mas da versão com o Andy Tennant”. De todos os seriados, o mais impactante foi a versão americana para o seriado dinamarquês “The Killing”.
Patti chega a ter um sonho no qual ajuda o detetive Stephen Holder (Joel Kinnaman, o “Robocop” do filme de José Padilha) numa investigação criminal. Ela também dedica um capítulo inteiro à série, lametando o fato de ela ter sido cancelada no ano passado, após quatro temporadas. A detetive protagonista da série, Sarah Linden (interpretada por Mireille Enos), também, é cultuada por Patti. “Sinto a devoção dela a cada terrível missão que assume, a complexidade de sua dedicação, fazendo rondas solitárias em campos pantanosos de grama comprida. Mesmo sendo personagem de série de TV, Sarah é querida para mim tanto quanto a maioria das pessoas.”
A cantora hoje passa a maior parte de seu tempo na praia de Rockaways, área costeira do bairro novaiorquino do Queens, com população de baixa e média renda. Em 2012, se apaixonou por um bangalô praiano de um cômodo só e fez uma proposta para dono. Como ele queria dinheiro vivo e Patti não o tinha, pediu que ele esperasse três meses, até o dinheiro de uma turnê que ela faria para a Europa e América do Norte entrasse. Poucas semanas após efetivar a compra, o furacão Sandy atingiu todo o norte da costa leste americana, devastando a região dos Rockaways. A casa de Patti foi uma das raras a salvar-se das enchentes e da erosão da praia. Patti conversa com a casa e dedica composições musicais a ela – as favoritas são as da trilha sonora de Michael Nyman para o filme “O Contrato do Amor”, de Peter Greenaway.
Ela encerra sua biografia questionando o tempo. “Quando é que ficamos tão velhos? Digo isso para minhas juntas, meu cabelo cor de ferro. Agora sou mais velha que o meu amor, que meus amigos que partiram. Talvez vou viver por muitos anos mais até a Biblioteca Pública de Nova York me dar a bengala da Virginia Woolf. Iria tratá-la com carinho para ela, e das pedras do bolso dela. Mas também iria querer continuar vivendo, me recusando a largar minha caneta”.