Estraga-prazeres cria excelente programa de TV nos EUA
Adam Conover acredita que muitos de nós somos verdadeiros otários. Pegue, por exemplo, o cara que investe US$ 4 mil em um anel de diamantes para propor noivado a namorada. Além de seguir tradição que existe há séculos, ele está fazendo um bom investimento. Certo?
Errado.
Na excelente série “Adam Ruins Everything” (Adam arruina tudo), que a rede americana TruTV começou a exibir esta semana, Conover explica (tudo com muito humor) que a “tradição” de presentear a namorada com um anel de diamantes é um dos maiores e mais bem sucedidos golpes publicitários já criados. Um verdadeiro engana-trouxa.
A campanha surgiu em 1938, quando a companhia sul-africana de diamantes De Beers, que detem monopólio global de minas de diamantes, contratou uma agência publicitária para propagar, nos Estados Unidos, a ideia de que um verdadeiro homem dá um anel para a namorada. Mas, até a década de 30, essa tradição não existia. Bastava um beijo ou qualquer outro tipo de demonstração afetiva para se pedir a mão da donzela em casamento.
A De Beers, explica Conover, usando várias fontes, passou a manipular todas as partes da tradição do noivado. Na campanha publicitária, ficou arbitrariamente sugerido que o valor ideal do anel de diamante a ser comprado devia ser o equivalente a um mês de salário. Mais tarde, esse teto subiu para dois salários. A De Beers também ajudou a propagar a ideia de que diamantes são eternos. Na verdade, a companhia quer que eles sejam eternos, e jamais jogados de volta ao mercado, pois “diamantes são intrinsicamente sem valor”. E essa declaração veio de ninguém menos que o filho de Harry Oppenheimer, fundador da De Beers, em entrevista ao jornal inglês “The Independent”, em 1999.
Diamantes, reza a lenda, são um ótimo investimento porque são raros. Na verdade, tudo lorota. Diamantes são muito comuns e, ao revender um anel de noivado, a desvalorização é de até 70%. A única razão de eles serem dispendiosos é que a De Beers, de posse do monopólio, artificialmente restringe a oferta dos diamantes no mercado para controlar e manter o preço elevado.
Essa denúncia não é nova. Conover tomou conhecimento dela ao ler um artigo que o escritor Edward Jay Epstein escreveu para revista “The Atlantic”. Surgiu assim a ideia de um esquete que Conover baixou no YouTube, no passado (em tempo para o dia dos namorados nos Estados Unidos), via seu programa humorístico online “CollegeHumor”, e que foi acessado mais de 6 milhões de vezes até o momento.
O programa “Adams Ruins Everything” é uma espécia de cruzamento entre programa de TV educativa com o escrachado humorístico “Saturday Night Live”. Conover é um afável porém sarcástico estraga-prazeres que tenta desmascarar – ou colocar em perspectiva – os mais diversos mitos e desinformações vindos de tradições ou situações de nosso cotidiano. Eles vão desde a verdade sobre a eficiência das vitaminas que estamos acostumados a comprar em lojas de produtos naturais até quando a doação de sangue é realmente necessária.
A apresentação do programa é extremamente bem sacada. Conover faz seus questionamentos em conversas com atores (alguns rostos conhecidos por fazerem pontas em seriados) que encenam as mais diversas situações e nos mais diversos locais. Todos os atores são ótimos.
Enquanto informações como estatísticas e declarações oficiais são jogadas no ar por Conover, surge no canto esquerdo da tela da TV a proveniência delas. E as fontes são precisamente listadas: nome do jornalista, veículo e data da publicação. O apresentador ainda entrevista experts para corroborar os fatos. A equipe de direção de arte do programa se utiliza desde animação com bonecos feitos de massinha de brincar até complicados gráficos interativos.
Os episódios são temáticos. O de estreia foi sobre “presentear/doar”. Além da De Beers, Conover tenta colocar os pingos nos is sobre o modelo de marketing moderno do “comprar um, doar um” adotado (com sucesso) por diversas companhias. Ele cita o exemplo da marca de sapatos Toms, fundada pelo americano Blake Micoskie, em 2006, depois que o CEO viajou para a Argentina e viu crianças sem sapatos.
Conover explica que mensagem de Micoskie, é “enganosa” e que não existe tanta generosidade assim no ato do empresário de doar para comunidades de crianças carentes na África e América do Sul, mas sim uma certa condescendência da parte dele. O entrevistado do segmento é TMS Ruge, mais conhecido como Teddy, o ugandense dono da ONG RainTree Farms, que tenta conscientizar entidades filantrópicas sobre a necessidade real das comunidades africanas carentes.
Teddy diz que os videos que a Toms disponibiliza no YouTube de crianças sem sapatos correndo pelas ruas de Uganda fazem parte do estilo “pobreza pornográfica” propagada por certas entidades e companhias filantrópicas. “Nossas crianças têm sapatos e existem lojas de sapatos em Uganda. Calçado é o menor de nossos problemas. Temos coisas mais importantes como a epidemia de malária, desemprego e a falta de eletricidade”, explica Teddy.
Doações de roupas também tiram das comunidades locais o poder de ser auto-suficientes. Segundo estudo apresentado no programa, esse tipo de doação é diretamente responsável por uma queda de 50% na contratação de funcionários feita pelas fábricas de roupas locais. O caráter filantrópico da Toms também é questionado. A companhia cobra cerca de US$ 60 por um par de sapatos que custa US$ 4 para ser feito. Só no ano passado, a Toms movimentou faturamento de US$ 600 milhões.
O ato de doar sangue também é discutido no programa. Prática normal desde a Segunda Guerra Mundial, os bancos de sangue lidam hoje com grande volume de doação em períodos de tragédia. Mas fato é que sangue tem data de validade: ele expira em 42 dias.
Citando artigo do “New York Times”, Conover explica que milhares de patriotas doaram sangue durante os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. E os hemocentros americanos tiveram que jogar fora cerca de 300 mil litros de sangue. Moral da história: o jeito mais eficiente de doar sangue é fazê-lo quando não existe tragédia estampada na primeira página de jornal.