Documentário mostra as contradições do visionário Walt Disney
Em “Walt Disney”, documentário de quase quatro horas de duração e cuja primeira parte foi exibida ontem à noite pela rede educativa americana PBS, ficamos sabendo algumas curiosidades do maior visionário do showbiz e também “garoto-propaganda” do sentimentalismo, imperialismo e da higienização.
Para os amigos mais chegados, Disney era conhecido como “Diz”. Para todo o resto, incluindo funcionários, ele era apenas Walt. Ele gostava de bater freneticamente (e impacientemente) a ponta dos dedos na mesa de trabalho. Fumava feito uma chaminé (ele morreu de câncer do pulmão em 1965, aos 66 anos) e sua tosse, ouvida a distância, fazia com que os animadores, que o esperavam numa sala de reuniões para despachos diários, não fossem pegos de surpresa. Nessas ocasiões, aqueles que anunciavam que tinham “uma ótima ideia” a apresentar, eram convencidos rapidamente do contrário. “Você tem uma ideia”, dizia Disney. “Quem decide se ela é ótima ou não, sou eu”.
Disney levava as duas filhas quase que diariamente para a escola. Antes de elas nascerem, Lillian, mulher do empresário sofreu um aborto, provocando um colapso mental e físico no marido. Obrigado por seu médico, ele descobriu os prazeres das viagens de férias. Na volta, se tornou um homem-atlético: boxe, hóquei, pólo. Quando jogava vôlei com sua equipe, na hora do almoço, ele lembrava seus parceiros, quase todos da equipe de animação, a tomarem cuidado com as pontas dos dedos e a munheca, “peças” importantes do trabalho deles. Por falar em trabalho, Disney não apagava a luz de sua sala até 1h, 2h da manhã.
Ele mudou para Los Angeles, vindo de Kansas City, onde sua empresa de animação faliu, com duas camisas na mala. Era um número vexatório para aquele que gostava de se vestir bem e de comprar boas roupas. Antes daquela viagem de trem, no começo da década de 20, sem dinheiro (ele usou o que restava para pagar a conta de luz e os cinco funcionários que teve de demitir), cuidava de sua higiene pessoal no banheiro da estação de trem. Em Los Angeles, seu irmão e futuro braço-direito Roy Disney, vendia aspiradores de pó de porta em porta. Roy queria que o irmão também fizesse o mesmo. Mas Walt só pensava em continuar a fazer desenhos. De preferência, artísticos. Ninguém lhe ousava dizer não. E alguns dos desenhos do futuro Walt Disney Studio, sobretudo “Silly Symphonies” e “Fantasia”, chegaram a ser “acusados” pelos críticos de “artísticos demais”.
“Walt Disney”, dirigido por Sarah Colt, em sua primeira parte, também revela como o homem que criou uma das companhias mais rentáveis do planeta, também podia ser “cru” e “ingênuo” em seu empreendimento, tendo que recomeçar várias vezes do zero.
Aos 21 anos de idade, e depois de ver seu estúdio Laugh-o-Gram, em Kansas City, falir, Disney se mudou para Hollywood. Ele estudou os concorrentes de perto, incluindo um dos mais famosos, Pat Sullivan, criador de “O Gato Félix”. Ter um bichinho como personagem-principal era a fórmula de sucesso. E, como tinham muitos gatos na parada, Disney surgiu com o coelho Oswald. Um distribuidor de Nova York encomendou a Disney uma série de desenhos do personagem, mas ele não prestou atenção no contrato, que dava àquela companhia os direitos sob os filmes. Aos 27 anos, ele, mais uma vez, se viu sem nada. Os amigos ilustradores o traíram e se mandaram para Manhattan, para trabalhar diretamente com a distribuidora.
Gatos, coelhos e esquilos, todos mudos, proliferavam na nascente indústria de animação. E Disney, novamente, se reergueu, dessa vez com a ajuda do camundongo Mickey Mouse. Mais uma vez fazendo negócios com os novaiorquinos, Disney conseguiu realizar seu sonho de criar um desenho animado com som, algo jamais visto pelo público. Ele assinou contrato para os serviços sonoros de uma empresa de ponta em Nova York. O desenho “Steamboat Willie”, estrelado por Mickey Mouse, foi sucesso estrondoso de público e crítica. Mas, na hora de pagar as contas da sonorização do desenho, os preços foram tão inflacionados pela companhia, que Disney faliu novamente.
Roy Disney tentou botar ordem na empresa. Chamou um time de gerentes ultra-capazes e um diretor de licenciamento de produtos que basicamente salvou a empresa. As toalhas e as xícaras com desenhos de Mickey Mouse e, sobretudo, o relógio Mickey (o produto de maior sucesso da companhia), injetaram grana na empresa.
Foi quando Disney reuniu, depois do jantar, em 1936, sua equipe de animadores num teatro e lhes vendeu a impossível ideia de criar o primeiro longa animado: “Branca de Neve e os Sete Anões”. Os requintes de detalhe da produção fez o orçamento estourar quatro vezes. O filme teve custo altíssimo: US$ 2 milhões de dólares (US$ 33.5 milhões em cifras atuais). Depois da premiere do filme em Hollywood em 1937, na qual Clark Gable e Marlene Dietrich chegaram às lágrimas, o filme se tornou uma sensação na bilheteria, arrecadando algo em torno de US$ 117 milhões atuais.
Disney torrou a grana construindo a sede dos estúdios Disney, em Burbank. Cada animador importante da companhia ganhou uma sala com mesa de trabalho, tapete e sofá para descanso e uso de restaurante, academia de ginástica (com direito a treinador olímpico importado da Suécia) e serviços de lavanderia privados. Ele também investiu pesado em três projetos simultâneos: “Bambi”, “Pinóquio” e “Fantasia”. Segundo estudiosos, em termos de animação, “Pinóquio” era ainda superior a “Branca de Neve”, mas, por conta da Segunda Guerra Mundial, quando desenhos perderam a popularidade nos Estados Unidos e Europa, a saga do filho de Gepeto deu um prejuízo de 25 milhões atuais aos cofres da empresa.
O documentário também mostra como a construção da sede da Disney, em Burbank, ajudou a fomentar a imagem da Disney de empresa de mentalidade higienizada. Também como a ingenuidade de Disney, em privilegiar seus principais animadores e funcionários com mimos e altos salários, criaria um grande ressentimento por entre os funcionários de baixo escalão, principalmente as mulheres, centenas delas relegadas ao departamento de pintura, e com salários semanais de US$ 16, enquanto os animadores principais, todos homens, ganhavam US$ 300.
Disney acreditava que seu estúdio era uma comunidade feliz, e que trabalhadores acordavam ansiosos para trabalhar e criar importantes trabalhos de animação. Esse sentimento falso de camaradagem no qual só Disney acreditava existir viria a se desintegrar em 1941, quando seus animadores iniciaram uma grande greve por maiores salários e também como pressão para o empresário sindicalizá-los. O Disney foi o último estúdio de Hollywood a sindicalizar seus funcionários. Esses eventos criaram um grande racha no estúdio e afetou Disney completamente. Historiadores acreditam que, a partir daquele momento, a afeição de Disney pelos desenhos teria sido abalada para sempre. Também morria ali sua afeição quase infantil pelos funcionários.
O documentário “Walt Disney” é narrado pelo ator Oliver Platt e todas as entrevistas com historiadores, biógrafos e ex-funcionários são novas e inéditas. A equipe produtora do programa da PBS teve acesso a documentos, clipes a acervos do estúdio Disney, mas um acordo foi firmado entre eles. Para evitar qualquer tipo de editorialização do documentário, a alta cúpula da empresa não teria acesso ao programa até sua noite de estreia na TV.