Em Nova York, Israel e África do Sul se encontram
Foi por acaso que entrei no pequeno restaurante pela primeira vez. Saindo da ioga, passei na porta e uma amiga disse: “vamos entrar?” O lugar não estava cheio – o que em Manhattan faz você acreditar que talvez não valha à pena experimentar porque os melhores restaurantes, a despeito de serem muito caros ou muito baratos, estão sempre lotados. Mas Tati foi insistente, eu estava com fome, então entramos. Ela pediu um iogurte com grapefruit (no Brasil, “toranja”), uma fruta que eu detesto, e procurei alguma outra coisa no menu. Acabei escolhendo uma fatia de torrada com manteiga e geleia, que era das poucas coisas que consegui entender naquele cardápio cheio de nomes estranhos como “shakshuka” e peri-peri”.
Mas é engraçado como a rotina pode mudar depois de uma pequena ação quase involuntária.
Quando o iogurte da Tati chegou eu, esfomeada, dei uma colherada e, meu Deus, que gosto espetacular tinha aquilo. Empolgada, cutuquei o grapefruit (eu ainda não ganho o suficiente para ter que escrever “toranja” e resistirei até minha última gota de suor), misturei com a granola que estava em cima de tudo e, enquanto ainda mastigava, levantei os braços clamando pelo garçom porque queria um daqueles só para mim.
Levantar os braços e pedir que o garçom venha até a sua mesa é um gesto, hoje sei, que em Nova York não pega bem.
O garçom virá até a mesa mesmo sem a demonstração de impaciência, é inevitável que ele venha, e o novaiorquino, sabendo disso, simplesmente espera. Mas eu, criada em São Paulo por mãe italiana, só percebi como a inquietação do “quero um garçom aqui agora mesmo” era resultado de um certo e detestável mimo algum tempo depois.
Oliver chegou à minha mesa rindo, o que é outra raridade em Nova York, uma cidade na qual garçons parecem treinados para jamais sorrir, muito pelo contrário. E em questão de segundos o gosto daquele iogurte e a atitude do garçom a despeito de meu mimimi em busca de atenção fizeram com que eu me apaixonasse.
Apaixonada sou muitíssimo fiel. Tão fiel que vou ao “Jack’s Wife Freda” todos os dias desde aquela minha primeira ida, que já tem mais de um ano.
Foi por causa da minha frequência patológica que acabei descobrindo a história do lugar, que é tão boa quanto o sabor de tudo o que eles servem – e como são as melhores histórias trata-se de uma história de amor.
Essa é então a história de Dean e Maya Jankelowitz.
Maya tinha acabado de servir o exército em Israel – uma obrigação no país para homens e mulheres ao completarem 18 anos – quando decidiu que era hora de pensar na vida, e no que queria fazer com ela. Tinha batalhado um lugar na secretaria do exército – um alívio porque não queria ter que pegar em armas –, e conseguiu tirar algum proveito da experiência, mas o final de um relacionamento a fez querer cruzar o oceano e voltar a Nova York, onde havia nascido, mas de onde tinha saído ainda pequena.
Então, em 1999 ela fez as malas e foi para os Estados Unidos dar um tempo.
Dois anos antes, Dean, também tentando assimilar o fim de um relacionamento, tinha deixado Joanesburgo, na África do Sul, e decidido ir para Nova York pensar na vida. Na cidade, conseguiu um emprego como garçom do badalado Balthazar, onde um dia seria apresentado à nova garçonete que tinha vindo de Israel.
Os dois se deram bem, mas Dean estava em um relacionamento e por algum tempo não houve nada além de conversas durante os curtos intervalos no trabalho. Um dia acabaram conversando além da conta, estenderam o papo para um passeio no Battery Park e nesse dia Dean passou a noite no apartamento de Maya, de onde nunca mais saiu.
“Achei um pouco estranho: ele não parecia que ia sair mais do apartamento, só que não falei nada. Aí, uns dias depois, ele foi até a casa onde morava para pegar o passaporte e voltou outra vez para a minha”, disse Maya ao “Blog Baixo Manhattan”. ‘E eu tinha duas amigas que mandavam eu bancar a difícil porque as coisas não poderiam parecer tão fáceis para ele, mas eu não estava querendo jogar, então deixei que ele fosse ficando”.
Percebendo que Dean não fazia a menor menção de sair dali, Maya ficou intrigada. “Na minha cabeça o homem da minha vida seria israelense, então aquilo era como um desvio de roteiro”. Mas uma noite, não muito tempo depois que Dean chegou, tudo ficou cristalino. “Eu disse olhando nos olhos dele: ‘Ah, eu não estava reconhecendo você nesse corpo porque achei que eles colocariam você num corpo de um homem israelense e você veio num corpo sulafricano, mas isso não muda nada porque eu finalmente te vejo agora; é você”.
Dean pediu Maya em casamento seis meses depois da primeira noite, e continuaram a trabalhar como garçons até que ele achasse que era hora de tentar voar mais alto.
Os dois falavam muito sobre abrir um lugar sem frescura, de preços honestos e que gostassem de frequenter com amigos, só que encontrar um ponto bacana e de aluguel minimamente honesto é tarefa dura em Nova York, e levariam quatro anos para achar o ponto ideal: um espaço quase na esquina da Lafayette com a Spring, no coração do Soho, e a alguns passos do Balthazar que os uniu.
Decidir o que serviriam não foi problema: comidas da infância deles, em Israel e na África do Sul. Juntos e guiados pela emoção bolaram um menu afetivo que acabou dando certo.
A mistura é perfeita – atraente, simples e ao mesmo tempo exótica.
O Green Shakshuka, memória da infância de Maya, é tão bom quanto impronunciável: dois ovos pochê mergulados em um molho de tomatilho. O Madame Freda, outro campeão de audiência, é a releitura do Croque Monsieur, só que com bacon de pato. O frango peri-peri vem das ruas de Joanesburgo e é um prato que Dean cresceu comendo – um pedaço apimentado de frango e uma salada grega de espinafre, pepino e tomate. E o Prego Roll, um sanduíche português de stake e manteiga de alho que Dean comia na África do Sul, é também dos mais populares. Sem falar no meu iogurte com granola e grapefruit, essa fruta que aprendi a amar.
O nome, essa esquisitice, também veio rápido.
Uma manhã, logo depois de acordar, Dean disse que o lugar deveria se chamar “Jack’s Wife Freda” em homenagem a sua avó. Os dois tiveram uma crise de riso diante de ideia tão inadequada e estapafúrdia, e quando finalmente pararam de rir pensaram: “mas por que não?”
Freda havia deixado uma forte impressão em Dean porque era uma mulher que servia comida tanto para família e para amigos quanto para estranhos, e que gostava de demonstrar amor assim: em volta da mesa.
E na mesa sempre farta de Freda eram todos família sem distinção de coisa nenhuma. Como a ideia era repetir esse ambiente, o nome prevaleceu — apesar de terem sido alertado inúmeras vezes por todos os amigos a mudar de ideia “porque um nome desses não vai pegar”.
Se posso servir como testemunha, o espírito de Freda vive forte dentro do pequeno restaurante. Uma mesa comunitária deixa as coisas ainda mais escancaradas, mas não é apenas a mesa grande ao redor da qual sentamos com estranhos, e sim o ambiente e a música e a paz de espírito (a despeito de o lugar estar apinhado), o bom humor de todos ali, e o fato de podermos sentir o amor no ar a partir do momento em que cruzamos a fronteira das ruas do Soho para esse lugar metade israelense, metade sulafricano e inteiro Freda.
Mas as coisas nem sempre foram fáceis.
Em janeiro de 2012 eles abriram as portas e entraram em um turbilhão para o qual não estavam preparados.
Com dois filhos pequenos, tinham que se revezar em turnos: Maya trabalhava durante o dia e Dean à noite. Como o restaurante fica mais 14 horas aberto, cada turno tinha, entre a chegada e a saída, umas nove horas. “Teve um dia que fui dar banho nas crianças, sentei no chão do banheiro e comecei a chorar um choro que nem sei de onde veio. Chorei de exaustão, de esgotamento, e nesse dia eu pensei: ‘ok, é o que tenho que dar de mim para esse restaurante. Tudo, e nem uma gota a menos’”.
Até que uma tarde qualquer no final de 2013, mais de um ano depois da inauguração e como naquela cena final de “Campo dos Sonhos”, as pessoas nunca mais pararam de chegar.
Hoje, os dois restaurantes reúnem uma multidão de clientes que esperam às vezes duas horas por uma mesa, Dean e Maya têm quase 100 funcionários e ainda se revezam em turnos, muitas vezes com as crianças – dois meninos de 8 e 4 anos – a tiracolo.
Outro dia me perguntaram por que, afinal, eu vou sempre num mesmo lugar morando em uma cidade reconhecida por ter infinitos bons lugares para se comer, e depois de pensar um pouco eu entendi que volto ali porque Dean e Maya servem verdade e dignidade numa metrópole que, como qualquer outra, é tão carente de verdades e dignidades.
Há dignidade em tudo o que existe ali dentro, da comida ao atendimento, e essa sensação é viciante. A noção de que somos uma comunidade, parte de uma mesma substância, não é sentida apenas por mim mas por inúmeros outros frequentadores que voltam e voltam, rostos que agora vejo quase todos os dias por ali e com os quais compartilho o jornal e a mesa.
No final, eles fizeram o mais difícil em uma cidade de 16.251 restaurantes, e onde no ano passado 162 novos foram abertos e 82 fecharam: eles sobreviveram.
Dean e Maya (Jack Gyllenhaal, outro que não sai de lá, e eu) estão sempre in loco, e acabaram de abrir um segundo “Freda”, tão aconchegante quanto o primeiro, agora no West Village.