O câncer como salvação: documentário americano quer revolucionar a forma como a doença é vista

Milly Lacombe

Câncer é a doença que mais cresce no mundo. Todos os anos quase dois milhões de americanos são diagnosticados com ela, e, anualmente, 600 mil morrem. A cada dois homens, um desenvolverá algum tipo de câncer durante a vida; e a cada três mulheres, uma escutará o mesmo diagnóstico.

Assim começa o documentário “Cancer, the emperor of all maladies” (“Câncer, o imperador de todos os males”) que vai ao ar no final de março e começo de abril pela PBS, a emissora de TV pública dos Estados Unidos. O Blog Baixo Manhattan teve acesso exclusivo aos três episódios do documentário, que é baseado no livro de mesmo nome do médico e pesquisador Siddhartha Mukherjee, vencedor do Pulitzer de 2011.

O médico e pesquisador Siddhartha Mukherjee e o documentarista Ken Burns
O médico e pesquisador Siddhartha Mukherjee e o documentarista Ken Burns (crédito: PBS)

Produzido pelo premiado documentarista Ken Burns (“The Central Park Five”, “The Roosevelts”) o documentário tem três partes de quase duas horas cada e alinha-se com o livro de Mukherjee quando conta a história do câncer em ritmo de biografia.

O tom comovente é dado pelas histórias narradas em tempo real de dezenas de pacientes diagnosticados com a doença: a câmera mostra alguns na hora em que recebem o diagnóstico e os acompanha durante o tratamento. Narrativas de sucesso e de fracasso se alternam e, entre elas, cientistas entram para explicar o que sabem sobre a célula cancerígena hoje, e como chegaram a esse entendimento.

Vendo “Câncer” aprendemos que o primeiro registro da doença foi feito há 4 mil anos, e desde então o ser humano tenta decifrá-la. Mais de três vezes cientistas acharam ter encontrado a cura, para pouco tempo depois descobrirem que a célula cancerígena se adapta, resiste e muda, driblando o tratamento.

Tragédia, esperança e resgate se revezam e o documentário cumpre seu destino mostrando como o câncer é a doença que transforma relações – sejam elas entre médico e paciente, entre paciente e familiares e amigos e entre o paciente e a própria doença.

Aprendemos como a técnica da mastectomia radical – cirurgia que foi inquestionável por décadas, e que mutilava o corpo feminino -, foi confrontada por uma jornalista que, diagnosticada com câncer de mama, se recusou a aceitar a “lógica” da brutal intervenção que, a despeito do tamanho do nódulo, arrancava não apenas a mama, mas todos os músculos abaixo dela e o das axilas; e que, movida pela indignação, provocou uma revolução.

Conhecemos outros homens e mulheres extraordinários que deram a vida a encontrar a cura, e constatamos como a humanidade se reveza de forma emocionante numa espécie de corrida de bastões, passando o bastão para novas gerações de pesquisadores e cientistas a cada descoberta: a noção de que, quando se encontrar a cura, o esforço terá sido da comunidade.

Entendemos que embora o câncer seja uma doença que não discrimina – atingindo empresários e trabalhadores, negros e brancos, pessoas saudáveis e outras nem tanto, adultos e crianças -, pobres e negros sem acesso a planos de saúde morrem em maior número – estatística que nos leva a concluir que, ao contrário da célula cancerígena que se recusa a excluir, o sistema econômico atual discrimina.

Ficamos sabendo como exatamente saímos da época em que câncer era uma doença incurável para outra na qual muitas formas da doença são tratáveis, curáveis e, mais recentemente, prevenidas.

Mas o documentário fica impressionante quando finalmente entendemos como o ser humano e a vida têm coisas em comum com a célula cancerígena, uma que os cientistas costumam chamar de “alvo móvel”. Ao mostrar como a célula é mutável, misteriosa e resistente os documentaristas escancaram a metáfora.

“A célula evoluiu, e nós evoluímos também”, diz Mukherjee no terceiro episódio. “Estamos começando a ter ideia da fundamental natureza da célula do câncer”, explica para dizer que o caminho para a cura está mais claro do que nunca.

Mukherjee também fala das pesquisas que por décadas consomem bilhões de dólares e parecem não levar a lugar algum até que, finalmente, uma descoberta joga luz e aponta o caminho. “Encontrar a cura é um dos mais significativos desafios da história humana”, diz.

Mas o trecho mais comovente não é exatamente o das conquistas científicas, nem o das histórias de curas impossíveis, nem mesmo o das superações improváveis. O trecho mais comovente é aquele que conta como os americanos entenderam que para vencer a doença teriam que se unir em uma comunidade, a despeito de divergências políticas, de classe social, de preconceitos, de raças ou ideologias.

Foi apenas quando perceberam que o esforço em busca da cura teria que ser coletivo que o cenário mudou radicalmente. Atuando em comunidade conseguiram levantar milhões de dólares, doados por ricos, pobres, empresários e trabalhadores e ajudando a reunir dinheiro para novas pesquisas. O documentário mostra como esse tipo de ação é feita até hoje, e como a dor e o sofrimento, aquilo que todos temos em comum, podem trazer à tona o melhor do ser humano.

No âmbito estatal, esse mesmo espírito de comunidade mobilizou congresso e senado através de cartas e manifestações populares para que fosse criado, em 1971, o “Cancer Act”, que desviou bilhões de dólares para pesquisas, dando vida a uma geração de cientistas e pesquisadores, e a novas possibilidades de curas.

Esse recado é, talvez, maior do que aquele que fica no final e que diz que descobrir a cura é mais do que provável, é inevitável: a noção de que podemos superar quaisquer diferenças em nome de uma causa que move a todos nós, sem distinções. Uma causa que, ao contrário de tantas outras que mobilizam coletividades, é baseada no amor e não no ódio. O entendimento do câncer como salvação e como meio, e não como fim.

O documentário vai ao ar nos dias 30 de março, 01 e 02 de abril nos Estados Unidos, mas o DVD pode ser comprador online a partir do dia 28 de abril através do site da PBS.