O personagem gay que choca o horário nobre da televisão americana

Marcelo Bernardes

Se a produtora e roteirista Shonda Rhimes comandasse um estúdio de Hollywood, o mantra da escassez da diversidade racial e de outras minorias dentro da indústria de entretenimento teria pouco eco.

Nas noites de quinta-feira, pela emissora ABC, que pertence ao conglomerado Disney, Rhimes impera absoluta com a exibição de três séries que levam a assinatura de sua companhia produtora, a ShondaLand. “Grey’s Anatomy” em sua 11a. temporada, a ultra cultuada “Scandal”, no quarto ano de exibição, e a novata “How To Get Away with Murder”, cujos capítulos iniciais acabaram de ser exibidos nos Estados Unidos. O show produzido por Rhimes e criado por Peter Nowalk, estreou dia 5 de março no Brasil, via canal Sony.

 

No menu de mais de 50 personagens principais desses três dramas, Rhimes não deixa uma minoria de fora: negros, latinos, asiáticos e gays estão em papéis principais, secundários ou em pontas. Qualquer minoria que sintonizar a ABC na noite quinta não vai se sentir excluída desses dramas ambientados, respectivamente, num hospital de Seattle, nos bastidores da Casa Branca, em Washington D.C, e no campus de uma universidade e em um escritório de advocacia na Filadélfia.

 

Na parte gay, a subdivisão é igualitária: lésbicas (em “Gray’s Anatomy”) e homens gays (em “Scandal” e “How To Get Away with Murder”). Há duas semanas, Rhimes apresentou em “Gray’s Anatomy”, o primeiro personagem transgênero (que também vem a ser negro) da história do horário nobre da TV. Até o fim da temporada vigente, Rhimes pretende mostrar a transição do personagem de homem para mulher.

De todos os personagens gays, o que mais força os limites do horário (dez da noite) é Connor Walsh, estudante de direito interpretado pelo ator Jack Falahee, de 26 anos, em “How To Get Away with Murder”. Apesar de ser coadjuvante na trama, o roteirista Nowalk acrescentou uma forte dose de complexidade ao personagem. E, em artigo da edição de março da revista gay Out , da qual foi capa, Falahee revela que, por conta de a ética não ser a principal virtude da personalidade de seu personagem, costuma ser parado na rua e ouvir declarações fortes e determinadas como “odeio você”.

 

O ator Jack Falahee, do seriado "How To Get Away with Murder" na capa da edição de março da revista Out. (Crédito: Reprodução)
O ator Jack Falahee, do seriado “How To Get Away with Murder” na capa da edição de março da revista Out. (Crédito: Reprodução)

Connor é uma espécie de Samantha Jones, de “Sex and the City”, com a pá virada. Ele é arrogante, usa drogas e adora (e transpira) sexo. Mas, ao contrário da personagem interpretada pela atriz Kim Cattrall, Connor usa o sexo com seus parceiros, puramente como forma de exploração. Ele tenta extrair informações que podem ajudar (nos bastidores) ou se tornarem evidências oficiais nos casos judiciais defendidos pela professora Annalise Keating, chefe e mentora dele, interpretada pela atriz Viola Davis.

 

Já no episódio de estreia, Connor vale de seu charme para seduzir e tirar informações de Oliver (Conrad Ricamora), que trabalha no setor de TI de uma agência de publicidade, na qual um dos funcionários está sendo processado por um cliente do escritório de advocacia que representa. Depois de alguns drinques, Conrad vai parar na casa de Oliver e, em cena escurecida pela penumbra do apartamento, passa a língua, de baixo até em cima, por toda a extensão das costas de Oliver.

 

Três episódios mais tarde, Oliver tira proveito de nova presa, dessa vez transando com um personagem gay contra uma máquina de fazer cópias. Depois do sexo, o assistente seduzido confidencia a um amigo, via celular: “E ele (Oliver) fez essa coisa no meu rabo que fez meus olhos lacrimejarem”.

 

A cena chocou muitos e o twitter ferveu. Pela primeira vez um canal aberto da TV estava sendo tão explícito quanto um episódio do polêmico seriado “Queer as Folk”, que estreou no canal americano à cabo Showtime em 2000 e inovou com suas fortes cenas de sexo. “As cenas gays estão demais”, escreveu um espectador sobre as passagens de Connor e seus parceiros sexuais. Rhimes, que tem mais de 850 mil seguidores no Twitter e sempre compra brigas com seus detratores, contra-atacou. “Não existem cenas gays no meu seriado. Existem cenas com pessoas nele”. E, em seguida, encerrou a conversa. “Se você usa a expressão “cenas gays”, você só não está bem atrasado para a festa, como também não está convidado para ela. Adeus, Felicia!”. Na gíria americana, a expressão “Adeus Felicia” é usada para o chato que ninguém se opõe – ou fica triste – quando esse deixa uma festa pela metade.

 

Em entrevista à Out, o ator Falahee disse que se surpreendeu com a reação de Rhimes. “Fico feliz que isso é uma grande coisa”, comentou. Mas o ator também ressaltou que o fato de o personagem ser gay e suas cenas polêmicas tem pouco peso em cena. “Na segunda-feira, vou trabalhar e tenho muitas cenas para fazer, e só estou pensando em minhas ações e meus objetivos – não que estou ali para fazer uma diferença”. Já o roteirista Nowalk, diz à revista. “Fico esperando que as cenas pareçam conturbadas do mesmo jeito que a vida também é uma zona”.

 

Siga o Baixo Manhattan também via Instagram: @blogbaixomanhattan