Liberdade de expressão, alguém viu?

Milly Lacombe

A edição de 9 de Março da semanal The New Yorker tem uma matéria interessante sobre a viagem que Peter Hessler, ex correspondente da publicação na China entre 2000 e 2007, fez pelo país recentemente para lançar seu novo livro. O título é “Viagens com meu censor” (Travels With My Censor), e Hessler conta como exatamente seu livro foi modificado para poder ser publicado na China.

 

Ilustração do artigo de Peter Kessler na The New Yorker desta semana (Crédito: Reprodução)
Ilustração do artigo de Peter Kessler na The New Yorker desta semana (Crédito: Reprodução)

 

O censor, Zhang Jiren, um jovem de trinta e poucos anos, acompanhou Hessler no tour por várias cidades, e no decorrer do período os dois conversaram sobre como e por que alguns trechos acabam sendo deixados de fora, ou, como Hessler escreve, “como Jiren torna meus livros politicamente aceitáveis na China”.

 

Desde que em 2013 Xi Jinping se tornou presidente, ele escreve, a repressão aumentou em relação à administração passada, ainda que ambas sejam muito mais abertas do que as do período em que a China estava isolada da maior parte do mundo ocidental.

 

Hessler explica que antes passagens de seus livros que tratassem da pobreza em território chinês eram suprimidas porque esse era um assunto delicado e as autoridades não permitiam que a China-pobre vazasse, mas agora a censura parece estar mais forte e, mesmo depois de dar entrevistas, ele recebe ligações de repórteres que dizem, “esse trecho não podemos usar na matéria”.

 

Ele conta como houve vezes em que mandava textos para serem publicados em revistas ou jornais e os editores explicavam que teriam que cortar ou modificar partes. Mais de uma vez Hessler optou por não publicar um texto em veículos que exigiam mudanças muito drásticas, e houve o episódio em que suas palavras foram alteradas de forma a parecerem propaganda para o governo chinês.

 

Hessler diz que na China existem três níveis de “revisões políticas”, mas raramente os cargos mais acima mexem num texto porque o trabalho “sujo” é executado por jovens como Jiren.

 

Para o leitor da The New Yorker o texto de Hessler é incômodo porque fala abertamente sobre como a censura é praticada, e como a liberdade de expressão é tolhida. Mas é nessa hora que talvez tenhamos que colocar as coisas em perspectiva.

 

Em fevereiro chegou às livrarias americanas o livro de Mohamedou Ould Slahi, (“Guantánamo Diary”) um mauritanês que está preso em Cuba, Guantánamo – para onde o governo americano envia suspeitos de práticas terroristas -, desde 2002 e ainda sem acusação formal. Esbarrei no livro por acaso antes mesmo de ler matérias sobre seu lançamento e, folheando as páginas, fiquei ligeiramente sem ar. Não pelo que li, mas pelo que não li. Muitos e muitos trechos suprimidos com uma marcação preta: palavras, frases, parágrafos, páginas.

 

 

Páginas riscadas do livro de Mohamedou Ould Slahi. (Crédito: Reprodução)
Páginas riscadas do livro de Mohamedou Ould Slahi. (Crédito: Reprodução)

 

 

Slahi, 44 anos, em depoimentos que chocam e comovem, conta como foi torturado dezenas e dezenas vezes, como sua mãe morreu sem que ele pudesse revê-la, como é estar privado de liberdade sem saber o que fez de errado. Recorrentemente durante depoimentos oficiais que estão transcritos no livro, Slahi pergunta “Do que sou acusado?”, e não obtém resposta.

 

Logo na primeira página, uma nota explica que a obra foi editada duas vezes. “Primeiro, pelo Governo dos Estados Unidos, que acrescentou mais de 2.500 marcas de censura”, (essas que vocês podem ver). E, depois, editado por Larry Siems, escritor e ativista político que ajudou Slahi a contar sua história ao mundo sem nunca ter recebido autorização para visitá-lo em Guantánamo. Siems diz: “Mohamedou não pôde participar dos cortes, ou se manifestar sobre eles, durante nenhuma das etapas das edições”

 

Capa do livro de Mohamedou Ould Slahi (Crédito: Reprodução)
Capa do livro de Mohamedou Ould Slahi (Crédito: Reprodução)

 

 

Slahi fala quatro línguas, inglês entre elas, e escreveu o livro em inglês. Em 2010, diante da falta de provas que pudessem incriminá-lo, um juiz federal determinou que ele fosse solto, mas o governo americano recorreu e Slahi segue detido sem saber o que fez.

 

Mohamedou Ould Slahi. (Crédito: cortesia do autor)
Mohamedou Ould Slahi. (Crédito: cortesia do autor)

 

“Citizenfour”, documentário de Laura Poitras sobre Edward Snowden e vencedor do Oscar, também conta em detalhes assombrosos como a Agência de Segurança Nacional Americana vigia e controla informações, telefonemas, emails e como tem a capacidade de ver tudo o que qualquer o cidadão americano faze m um computador, um nível de vigilância e controle jamais alcançado por nenhum estado totalitário.

 

O filme deve ser visto, e o livro de Slahi deve ser lido. Só assim poderemos colocar coisas como o excelente texto de Hessler em contexto.

 

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